terça-feira, 6 de dezembro de 2005

O cão nosso de cada dia (*)

A vida estressante da cidade nos remete à necessidade do contato com a natureza. Acredito que quem tem em casa um bicho de estimação, principalmente se for um cão, tem uma ponte com essa natureza. Tenho em casa 5 espécimes anti-estressantes com os quais brinco e rolo no chão feito criança, esquecendo o que acontece além da janela-TV que se abre à minha frente.
Com um deles em especial, tenho iniciado uma nova rotina de inter-ajuda. É Tunga, um fila brasileiro misturado com vira-lata (ainda mais brasileiro), de pele dourada e que vive estressado por ficar preso em casa. Resolvemos sair juntos todos os dias de manhã (antes d'eu ir ao trabalho) para um passeio na Vera Paz (ou o que restou dela), que fica a 100 metros de minha casa. Eu, meio sonolento só de calção, ele atento e devidamente trajado numa coleira-peitoral.
Tunga é um tipo temperamental, marrento: encrespa com qualquer coisa que não conhece, e, às vezes, pode até se virar contra o dono (já levei algumas mordidas dele!). Mas no fundo é um sentimental...
Como todo cachorro que se preza, Tunga sai cheirando todos os espaços e sempre levanta a perna, despeja jatos de sua urina e marca seu território. Ao entrarmos na área da Vera Paz onde fica um campinho de futebol ele dá a primeira levantada de perna num outdoor onde dois políticos sorriem pedindo votos à Santa. Não acredito que estivesse marcando território neste caso...
Encontramos sinais de um incêndio recente no mato que insiste em crescer na beira da praia. Do terminal da Cargill até à avenida Tapajós, um rastro de destruição de dar dó. Tunga cheira o ar, me olha e parece desaprovar. Antes de atravessarmos o campo, paro e falo com dois homens que estão terminando de calafetar um barco. Um deles me conta que o incêndio foi criminoso: alguém chegou e simplesmente tocou fogo no mato e saiu correndo. O fogo se alastrou no mato seco e só não atingiu a pequena embarcação porque eles estavam lá e jogaram água ao redor.
Tunga me puxa para o campinho. Sai marcando cada um dos picos de escanteio, traves e restos de arquibancadas. É um jogador. Sentamos no meio do campo e Tunga late para os carros que passam na avenida. Ficamos ali por alguns minutos contemplando um pedaço da natureza que está sendo engolido pelo progresso.
O cão me puxa de novo e segue marcando árvores, gramas, tôcos, pedras. Até parar diante de uma cerca com uma placa com inscrição ameaçadora: “Proibido ultrapassar: área restrita”. Do outro lado, galpões. Tunga me fita. Balanço a cabeça negativamente, mas como bom anarquista ele levanta a perna mais uma vez e mija na placa...
Tunga sabe que a natureza não gosta de cercas e nem de proibições. E não deve entender como nós, humanos, nos acomodamos sem reagir.
É hora de voltar para casa.
Uma pilha de processos e de carimbos me esperam.
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(*) artigo inserido em minha coluna Perípatos, publicada no jornal Diário do Pará, em sua edição regional (Diário do Tapajós), de 02.12.2005.

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