sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Poesia

Meus poucos e fiéis leitores dão uma forcinha comentando minhas crônicas aqui no Blog. Na última crônica vários deles mandaram suas impressões, alguns por e-mail e outros na minha página do Orkut.
Uma das que mais me chamou a atenção foi de um ex-colega do curso de Letras da Ufpa., poeta de mão cheia, Hamilton Fernandes (na foto com uma boina das que eu também gosto de usar), que hoje reside em Macapá e que de lá enviou uma linda poesia que reproduzo neste espaço:
Velho cais


O vento nas vagas

Vaga

Sem rumo

Seu retorno é anunciado

Pelo cheiro de maresia

Que exala nos cascos das

Embarcações

Aportadas no velho cais

Onde as ilusões embarcam

Para a viagem sem retorno

Velho cais

Quantas recordações

Trazes a este marinheiro

De viagem sem fim

Que sequer marinheiro é

Apenas sonhador

E por isso mesmo

Marinheiro-mor

Capitão de longo-curso,

Eterno curso, diria eu,

No eterno sonho

Eterna poesia

Sonhar de viagem sem fim

Onde o retorno do vento

É anunciado

Pelo cheiro de maresia

No velho cais das embarcações...


Stm, 05/01/2000


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Hamilton promete enviar, também, contos que produziu para o meu/nosso deleite. Tô esperando Hamilton!

terça-feira, 28 de agosto de 2007

INCOMPETENTES!

Essa é a manchete do principal jornal grego, o ELEFTEROTYPIA (Imprensa Livre), que leio na internet e que fala sobre a situação dramática que o povo grego vive, diante do incontrolável incêndio que já ameaça as ruínas da cidade de Olympia (na foto, uma estátua cercada de fogo), onde foram realizadas as primeiras olimpíadas pelos gregos da antigüidade.
A foto de satélite abaixo, mostra a extensão da fumaça cobrindo grande parte do território grego.

O governo do primeiro-ministro Kostas Karamanlis, do partido Nova Democracia (o Democratas de lá) é acusado de incompetente pela imprensa grega. Ele decretou estado de emergência e às vésperas de uma nova eleição nacional e corre o risco de ver sua candidatura à reeleição queimada no incêndio nacional.
Meu pai está morando lá, mas ainda não consegui contato com ele para saber mais detalhes.
O desespero toma conta do povo grego.

Uma estréia digna de um repórter atrapalhado (*)

Recebi a provocação de um leitor anônimo, através de carinhoso e-mail, pedindo que eu conte como foi minha estréia na Rádio Rural de Santarém, há 23 anos. Acho que esse anônimo sabe das coisas... E porque esconder?

Maio de 1984. O departamento de jornalismo da poderosa Rádio Rural precisava contratar um novo repórter. Um ex-seminarista nascido na vila de Cucurunã, o hoje bem sucedido publicitário Dornélio Silva, havia retornado há pouco tempo para sua cidade natal com um projeto de criar pintos, mas não deu certo: os pintos de Dornélio morreram (ele vai odiar isso...) e acabou indo trabalhar na Catequese Rural onde mantinha vínculos com os movimentos sociais. Dornélio teve a idéia de tentar indicar alguém que estivesse atuando nesse movimento, mas não conhecia ninguém pessoalmente.

Ele foi à uma das infindáveis reuniões de um desses grupos e perguntou: “Vocês não têm alguém que atue no movimento, que seja meio doido e saiba escrever alguma coisa para ser indicado e disputar uma vaga de repórter na Rural?”. Os líderes sindicais, em uníssono (num êxtase coletivo), gritaram: “Jota Ninos!” Não sei se era amor por minha performance como militante, pelo meu estilo aguerrido ou simplesmente para me ver pelas costas. Mal eles sabiam que ali nascia um repórter!

Eu era o cara que andava sempre de gravador, caneta e papel na mão, ou escrevendo atas ou gravando conversas. Uma memória ambulante que tinha sua utilidade no registro do movimento popular em panfletos, boletins e outros materiais impressos. Além disso, já vinha gravando semanalmente o programa de rádio Momento Sindical, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na Rádio Rural. Ao meu lado a também futura jornalista (e hoje diretora do Ideflor) Raimunda Monteiro, a eterna Raimundinha.


Naquele tempo eu tinha também uma barulhenta Mobylette Caloi prateada, motoneta precursora das scooters de hoje e que eu vivia empurrando nos areiões da periferia. Corpo esquálido (com uma protuberante barriguinha), óculos de John Lennon e cabelo idem, sandálias de dedo, calça jeans surrada e uma velha mochila fedorenta cheia de papel velho. Em suma, era um lixo ambulante se achando revolucionário!

Recebi a notícia com entusiasmo. Três dias depois lá estava eu me apresentando ao futuro chefe, Eriberto Santos. Ao chegar na rádio passei pelos estúdios onde tocava uma música que fazia sucesso naquela época, do Genival Lacerda: “mata o véio, mata o véio...” Torci o nariz. Soube então, que disputaria a vaga com outro candidato que apareceu por lá. Eriberto, solenemente, mas com aquele eterno sorriso de seresteiro, nos deu duas pautas diferentes.


Eu deveria entrevistar o novo coordenador da regional da Sespa que funcionava àquela época na avenida Barão do Rio Branco, onde hoje se compra vale-transporte. Em seguida, uma esticada ao Mercado Modelo (o Mercadão, naquela época, não existia) para saber como estava o preço do peixe, e por último, uma passagem na emergência do Sesp e na Delegacia de Polícia. Pautas corriqueiras de qualquer “foca”...
“Quem chegar primeiro, ganha a vaga”, disse meu editor. Saímos os dois candidatos chispando e ouvimos atrás de nós gargalhadas abafadas de radialistas que faziam apostas de quem desistiria primeiro...


Logo na primeira parada o primeiro chá de cadeira. A ilustre autoridade (nem me recordo quem era) me deixou plantado um bom tempo, esperando. Desesperado, olhava os minutos passarem e achei que se continuasse ali meu adversário acabaria chegando primeiro nas fontes de notícia e tchau emprego! Comecei a pensar com meus botões: será que foi uma cilada daquele editor para favorecer o outro? Era uma época em que todo revolucionário petista era paranóico e vivia pensando que o mundo estava contra si (cá pra nós, isso não mudou muito nos dias de hoje entre psois e pstus...).

Decidi me rebelar contra a pauta. “Vou ali e volto”, disse à solícita secretária. Olhei o relógio e vi que tinha pouco tempo para voltar à redação. As palavras de Eriberto ecoavam em minha cabeça: “Quem chegar primeiro, ganha a vaga.” Eu não podia perder a chance.


Em desembalada carreira montei minha possante Monareta e desci a Barão em direção à praça da Matriz, com intenção de dobrar no Cine Olympia e chegar ao Mercado Modelo (esse era o trajeto na época). Ia pensando: “como vou perguntar sobre peixes, se mal os conheço?”. Se Eriberto tivesse me pedido uma pauta sobre reuniões de sindicatos, eu daria um show. E continuei pensando, monareta na banguela, “como é mesmo o nome daquele peixe que o Eriberto disse, Jara...”

- Quiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... A freada não conseguiu parar a motoneta. Por trás da matriz, dei de cara com um velhinho atravessando a rua. Ele caiu prum lado eu pro outro e a monareta na parede da igreja!

O choque no meio da rua. Carros páram, mulheres gritam. “Socorre o velhinho!”, disse uma beata. “Motoqueiro assassino!”, condenou a outra. Joelho ralado, calça rasgada, motoneta avariada e o velhinho caído no asfalto de cara no chão. A turba já pensa em me agredir. Vejo dois radialistas chegando ao local para dar o “furo”. Gérson Gregório e Bena Santana, que mal sabiam que estavam frente a um futuro colega, registravam a cena. Escutei a narrativa para o programa do Edinaldo Mota: “Motoqueiro irresponsável pode ter matado um velhinho aqui próximo à Matriz!”. Minha primeira notícia na rádio era eu mesmo!!!

Meio choroso olhava atônito a cena sem saber o que fazer, até levar um safanão de um homem-armário. “Levanta, guri. Socorre o velho, tchê!” O gaúcho me puxou o braço e quase ficou com ele nas mãos... Cheguei próximo do velhinho e ele respirava. Com a ajuda do gaúcho coloquei o velhinho na carroceria de sua picape e só tive tempo de dizer a uma funcionária da Matriz: “Cuide da minha moto!”. Ela balançou a cabeça positivamente, enquanto Bena Santana entrevistava os transeuntes.


Chego à emergência do Sesp. O velhinho é socorrido e passa bem. Continuo choroso. O gaúcho foi embora. O médico me consola, mas ao mesmo tempo me assusta. “É bom você ir registrar o caso na delegacia, vai que o velho morre...” Desabo em prantos, mas logo me refaço. Aproveito e pergunto como está o plantão. “Tirando esse acidente, tudo normal”, diz o plantonista. Na delegacia prefiro não registrar minha ocorrência e perder um tempo precioso. “Depois eu faço”, pensei. Precisava acreditar que tudo acabaria bem. Anoto alguns roubos de galinha e sigo em frente. Ouço quando um policial chega e diz: “Parece que um motoqueiro matou um velhinho lá na matriz!”. O delegado me olha e diz: “Jornalista, mete pau nesses malucos!”. “Xa’comigo, delega!”, digo eu todo íntimo, quase me borrando nas calças.

Pego um ônibus e desço até a regional da Sespa. Sou recebido pelo diretor. O joelho dói, o coração apertado, mas não posso perder o emprego. “Cuidado ao sair amigo, tem um motoqueiro maluco matando gente aí na Barão”!, me informa o médico. Quase mostro-lhe um cotoco, mas dou um sorriso amarelo e saio.

Volto à Matriz, agradeço a gentil senhora e pego o que sobrou da Monareta e sigo ao Mercado Modelo, aos trancos e barrancos. O Pirarucu continua caro. Melhor preço é o Acari. O joelho continua doendo. Sinto que vou desmaiar. A motoneta, já fumegando, me leva até à Rural que funcionava onde hoje é a entrada da TV Vida, na travessa dos Mártires. Entrego as reportagens ao Eriberto. Minhas pernas tremem. Vejo que o tempo marcado já extrapolou e tento explicar.

“Mas fostes tu a notícia do dia?”, diz Eriberto em gargalhada. “E o emprego?”, pergunto, já variando. “Perdi a vaga pro meu concorrente?”. Eriberto, com o olhar terno, arremata: “a vaga é tua cara, o outro desistiu e você apesar de passar por um acidente ainda trouxe todas as pautas. Parabéns, colega!”.


Meu batismo no jornalismo foi assim: com sangue, suor e lágrimas. O velhinho ficou bem e até ficamos amigos. Mas tive que suportar meus colegas de rádio me torturarem por vários meses com uma musiquinha que passou a ser meu prefixo, no início de carreira, por obra e graça de Edinaldo Mota que me apelidou de “repórter mata o véio”!


E haja Genival Lacerda, antes das notícias policiais...

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(*) Artigo inserido hoje em minha coluna semanal Perípatos, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do jornal Diário do Pará. A charge (mal feita) é uma montagem grosseira feita por mim sobre desenho anônimo obtido na internet.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Retorno

Depois de mais de 20 dias sem postar neste blog, resolvi aloprar: vão abaixo as três últimas crônicas que escrevi no Diário do Tapajós.
Este blog é assim, vai e vem, invade seu espaço sem pedir licença. Te excita, some e ressuscita.
Mas os meus poucos (e fiéis) leitores compreendem...
Deliciem-se, principalmente pela história de minha "prisão política"...

O “preso político” e o “ladrão de estimação”

Sabe aquela frase: “nem tudo é como parece ser”? O título dessa crônica cheio de aspas ilustra exatamente isso. Cada vez mais a gente vive de aparências no mundo de hoje e muitas vezes aquilo que imaginamos sobre alguém, pode não ser a realidade.
Pensando nisso lembrei de um fato ocorrido comigo quando tinha 18 anos (faz tempo...) e como quase virei notícia nacional por conta de um mal entendido...
Naquela época tinha decidido sair de casa e trabalhar por conta própria. Virei comerciário, balconista de uma loja de ferragens em Santarém. Com um salário em cruzeiros e inflação galopante era uma verdadeira aventura arriscar tal manobra, deixando o conforto da casa do papai. Mas para alugar uma casa, não poderia fazê-lo sem ter parcerias.
Juntei-me a dois colegas também comerciários, Edval Borges e João Batista Vieira. O primeiro vive hoje em Macapá e o segundo chegou a ser presidente do Sindicato dos Comerciários e atualmente é chefe de tributação da Prefeitura Municipal de Santarém. Naquela época, nós três participávamos do movimento sindical. Eu já era um militante com grande experiência, apesar da pouca idade, e integrava grupos de direção do sindicato e do PT.
Fizemos nossa pequena “república” num casebre de madeira no bairro do Santíssimo. Achamos que tínhamos feito um negócio da China, pois o aluguel era barato e o terreno era enorme: a frente ficava numa rua e os fundos davam em outra rua paralela.
Como passávamos o dia no trabalho nossa casa vivia desprotegida, mas nas primeiras semanas nada de anormal ocorria. Até o dia em que resolvemos dar uma utilidade ao vasto quintal: desmatamos e o transformamos numa bela área para jogar voleibol. Era época da seleção de prata de Bernardinho (hoje, técnico campeão) e Bernardo (o homem do saque “jornada nas estrelas”). Compramos bola, rede e convidamos uma turma de vizinhos para estrear nossa quadra.
A farra acabou se tornando semanal. Todos os domingos, vinha gente de vários cantos do bairro jogar em nossa quadra. E eu, apesar da agenda cheia de tantas reuniões, participava dos jogos e até arriscava dar saques à la Bernardinho, que quase sempre acabavam do outro lado da rua ou no quintal do vizinho... Como esportista eu era um excelente militante da causa operária...
Aliás, nessa época vivíamos momentos de tensão no movimento sindical. Havia ocorrido a morte de um sindicalista rural e eu fazia parte de um comitê que buscava resgatar a memória dele.
Mas aí, começou a ocorrer o inusitado em nossa casa. Todo dia, ao retornar do trabalho, notávamos que alguma coisa sumira de nossa casa sem que houvesse qualquer sinal de arrombamento. Um dia era uma roupa, outro dia um sapato e assim por diante. Constatamos que tínhamos agora um “ladrão de estimação”, que nos visitava enquanto trabalhávamos e nos furtava objetos que tínhamos comprado com nosso suado salário. Não cabia nenhum discurso marxista sobre mais-valia ou exploração do proletariado. O fato é que estávamos perdendo literalmente as calças! Provavelmente, nosso “ladrão de estimação” sabia que passávamos o dia fora de casa e talvez fosse um dos nossos “jogadores” de final de semana.
Os roubos foram crescendo em valor. Foi-se a bola de vôlei, a rede, e até minha velha vitrola de discos, estilo pasta 007! Precisávamos estancar a sangria. Pedimos a uma vizinha que ficasse “de moita” e nos avisasse caso notasse qualquer invasão.
Esse dia chegou. Estávamos no trabalho, quando a vizinha disse que nosso “ladrão de estimação” acabara de atacar. Decidimos que eu deveria pedir licença para resolver o problema. Peguei um táxi e fui até em casa. A vizinha disse que viu um garoto levantando uma telha de zinco e saindo com outra rede e bola de vôlei que acabáramos de comprar! E disse mais: era um dos meninos que jogava no terreno e morava numa casa na rua de trás. Já era até conhecido por praticar outros furtos na vizinhança.
Corri até à praça do Santíssimo onde havia um PM-Box. Expliquei aos policiais e pedi ajuda. Eles me convidaram a seguir no carro e indicar a casa de nosso “ladrão de estimação”. Entrei sem pensar que aquele ato poderia causar qualquer barulho. Sentei entre os dois policiais e seguimos até o endereço. No caminho, vi um conhecido que era líder de uma associação de moradores e militante de um sindicato. Acenei para ele com um leve sorriso, sem me dar conta do que isso geraria a maior confusão.
Ao chegar na casa do “ladrão de estimação”, ele estava sentado no muro. Ao ver o carro deu “bandeira”, saiu correndo e acabou preso. Ele ainda tinha em mãos os objetos roubados, que me foram devolvidos. Fui com ele no carro da PM até à delegacia da Interventoria (onde hoje funciona a Funcap), para o registro da ocorrência. Chegando à delegacia, vi na rua outro companheiro de luta que também participava de movimentos sociais. Também acenei, com um leve sorriso.
Saí feliz por ter recuperado os objetos e voltei pra casa, devidamente escoltado pela PM. Ao chegar lá, qual a minha surpresa: uma multidão de militantes do movimento já fechava a rua, com faixas e cartazes. Entre eles, os dois que haviam me visto no carro!
Os vizinhos, atônitos, não entendiam nada. Eu me dei conta então de que a rede de informações do movimento tinha agido rapidamente, a partir da informação precipitada dos dois colegas que me viram no carro da PM! Tinha virado um “preso político!


Entidades sindicais de todo o país já começavam a ser informadas da possível prisão de um “valoroso companheiro sindicalista comerciário”. Quem sabe até o companheiro Lula faria menção ao meu caso durante as manifestações de metalúrgicos que aconteciam em São Bernardo! A Anistia Internacional talvez já estivesse recolhendo assinaturas nas ruas de Londres pela “liberação imediata de um líder sindical da América Latina”. Até Lech Walesa, líder do Solidarnósc, na Polônia, prestava solidariedade a um “companheiro de luta que como eu, vive o dissabor de estar preso por sua militância pela liberdade dos trabalhadores”. Já estava sendo organizado inclusive um “Movimento Nacional pela Liberdade de Jota Ninos”!
Os manifestantes gritavam meu nome com ênfase e os PMs se entreolhavam sem saber o que acontecia. “São todos jogadores de vôlei da sua quadra?”, perguntou-me o soldado incrédulo. “Puxa, o campeonato de vocês deve ser famoso no bairro”, completou o sargento ao lado dele.
Com o sorriso amarelo, saí do carro e levantei as mãos na tentativa de esclarecer o mal entendido. A turba foi ao delírio: “Viva o Jota, ele é um patriota!”. Um companheiro, de óculos, pasta preta e camisa de mangas se aproxima e diz que é advogado. Havia sido contratado para me defender contra a “opressão do regime militar”. Me puxa de lado e fala em tom áspero aos PM: “Tenho direito de falar com meu cliente!”. Os PMs se entreolham sem entender.
De repente sou carregado pela multidão enquanto hinos são entoados, sem que tenha tempo de explicar o ocorrido. Jovens estudantes de braços dados cantam “Há soldados armados, amados ou não!(...)”. Vandré era o apropriado para aquela situação.
Um dos líderes do movimento levanta os braços e decreta: “vamos ouvir o companheiro Jota!”. Entre aplausos e um sorriso amarelo, tento explicar o imbróglio quando o soldado da PM me entrega a bola e a rede, dizendo: “Gostei do clima da sua turma, convida a gente para um próximo jogo. Eu saco igual ao Bernardinho...”
O carro saiu enquanto os companheiros apupavam “Covardes! Covardes!”. Todos me abraçavam, cumprimentando-me pela coragem de enfrentar “a repressão policial do regime militar”!
Imaginem a decepção depois que contei o que havia acontecido... Tive meu dia de “preso político”, sem nunca ter sido...

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(*) Artigo inserido no dia 07.08.2007, em minha coluna semanal Perípatos, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.
A fotomontagem (mal feita) é de minha autoria sobre caricatura de Don Tonino.

Paradigmas de ouro contra a mediocridade esportiva

Vou chover no molhado. Dizer o que outros – mais experientes do que eu no assunto – andam dizendo por aí depois de um pan-americano que deixou lições para quem dirige o esporte brasileiro.
O recado não é só para cartolas e técnicos, mas principalmente para os políticos que contaminam a eterna fonte de amadurecimento dos jovens, a prática esportiva, com a mesquinharia do cotidiano de corrupções quando desviam verbas que serviriam para construir quadras polivalentes e as transformam em piscinas de suas mansões.
Não há uma receita mágica para se chegar a uma performance como a dos países que lideram a disputa de medalhas em quase todos os pans: os capitalistas americanos e os comunistas cubanos usam praticamente das mesmas armas, já que o esporte faz parte da vida dos jovens dos dois países desde a infância. É política de governo, não lição de vida individual.
Já no caso brasileiro, sempre que um atleta chega ao podium é sempre o mesmo drama: “esta é a vitória de um atleta que vivia num subúrbio miserável ou numa comunidade rural longínqua, que não tinha nenhum tênis para praticar o esporte que mais amava, mas que lutou, perseverou e agora ganhou uma medalha”. Quantas vezes vimos a mesma narrativa dos locutores? Porque tem que ser sempre assim?
Aqui, a especulação imobiliária de um capitalismo selvagem, dita o crescimento desordenado das cidades, expulsando os campinhos de periferias. As escolas sem quadras, professores sem estímulo. No interior, a situação piora já que não existe sequer uma reforma agrária digna do nome para que as famílias possam se fixar, produzir e evoluir nas comunidades rurais. O que dizer dos jovens que herdam o trabalho escravo das lavouras sem poder sonhar ao menos com uma escola?
Saindo das considerações genéricas vou ao mais trivial dos esportes, o nosso futebol. Vimos num estádio lotado as meninas do Brasil dando show de futebol de campo, sem que haja sequer um campeonato nacional de respeito!
Aquele time teria feito uma campanha melhor que os ridículos jogadores da eterna Era Dunga! Essa era do futebol, pra quem não sabe, começou depois que a seleção de Telê falhou apesar de jogar bonito em 1982 e 1986. Aí chegou um tal de Lazzaroni e sacramentou que o negócio era jogar retrancado para ganhar a Copa de 1990 na Itália, com o “xerife” Dunga. Perdeu e o futebol brasileiro nunca mais foi o mesmo...
É verdade que ganhamos a Copa de 94, num horroroso empate e porque o craque italiano não era o Paolo Rossi de 82, e sim o Baggio, que chutou na trave!
Em 2002, conseguimos recuperar um pouco de nossa auto-estima depois do fiasco de 98 na França, mas foi só chegar 2006 e descobrimos que a Era Dunga não havia acabado. Pelo contrário, estava só começando... E a CBF nos brinda com quem? Ele mesmo, Dunga, o todo-poderoso!
Ganhamos da Argentina na Copa América e todo mundo logo esqueceu o futebol medíocre que jogamos. Esse é o nosso problema: temos memória muito curta.
Ah! se tivéssemos umas 11 Martas para colocar no lugar de preguiçosos Loves, Maicons e outros bagres que nos sobraram na “selecinha”!..
Marta (foto) é um nome que cito como símbolo de um grupo, pois o que vimos foi um futebol bonito como nos tempos de Pelé, em que a bola era tratada com mais carinho. O próprio “Rei” disse que ela é o “Pelé de saias” (o Édson não podia deixar de fazer o seu marketing, entende?).
Eu poderia analisar cada um dos exemplos surgidos de tanta gente desconhecida que nos brindou com medalhas e uma campanha inesquecível no Pan, mas o resultado seria o mesmo: precisamos fazer com que o esporte não seja um sonho que cada um individualmente busca alcançar.
O esporte tem que ser uma realidade de um trabalho coletivo, a ponto de que um dia o desportista possa chegar ao podium e ao invés de agradecer primeiro a Deus e depois ao seus pais, possa dizer: “agradeço ao meu país por ter me dado a chance de erguer esta bandeira e ganhar esta medalha!” Que possamos fazer do paradigma de ouro desse Pan, algo que transforme a mediocridade esportiva do país.
Patriotismo não é chorar pela bandeira que sobe só em época de Copa ou de jogos olímpicos. Patriotismo é poder ter orgulho de um país que está sempre presente, velando pelo futuro de seus filhos.
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(*) Artigo inserido no dia 31.07.2007, em minha coluna semanal Perípatos, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.

Narciso acha feio o que não é espelho

A frase do título, para quem entende de música brasileira, é uma das mais bonitas da obra Sampa, de Caetano Veloso, o baiano que melhor descreveu São Paulo. Ela surge como constatação aos versos: “Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto/ Chamei de mau gosto o que vi de mau gosto, mau gosto” e é a mais pura tradução do Narcisismo, um dos termos freudianos para explicar características do ser humano em relação a condição mórbida do indivíduo que tem interesse exagerado pelo próprio corpo.
O termo narcisismo, de Freud, tem suas origens numa das mais belas e tristes lendas da mitologia grega e surgiu provavelmente da superstição grega segundo a qual contemplar a própria imagem prenunciava má sorte. Narciso era um belo jovem, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope e ao nascer, o adivinho Tirésias profetizou que ele teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Indiferente aos sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor de várias mulheres, entre elas a ninfa Eco. Seu egoísmo provocou o castigo dos deuses: um dia, ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até morrer e em seu lugar surgiu a flor conhecida pelo seu nome.
Podemos concluir que vivemos hoje na Era de Narciso.
Desde a década de 1980, o culto ao corpo da chamada Geração Saúde e a programação televisiva enfatizando cada vez mais a necessidade de esculpir uma beleza estética em detrimento de uma harmonia entre corpo e mente contribuiu com a construção desse imaginário. A ditadura da beleza de Xuxas e morenas e loiras do Tchan, esculpiu ainda mais, desde a infância, a necessidade por um padrão estético que nos diferencie dos demais. Uma diferença construída a partir de um modelo único. Acaba-se aderindo à modas e perde-se a individualidade.
Academias abarrotadas, disputas nas vitrines pelas roupas da moda e está implantada a ditadura visual. A juventude já não se preocupa com o intelecto. Basta que as “minas” sejam gatas e os “manos” sejam “sarados”.
O Narcisismo toma conta do dia-a-dia e programas como os Big Brothers da vida, só ajudam a insuflar a necessidade do espelho. A tecnologia das câmeras digitais e dos flogs na internet, contribuem ainda mais na popularização desse culto à imagem.
Um celular na mão e nenhuma idéia na cabeça. Essa é imagem contra-parafraseada à versão glauberiana. Hoje basta um aparelhinho destes para que estejamos sempre batendo fotos, de preferência de nós mesmos. É só fazer um passeio em qualquer lugar público e constatar de que 11 em 10 grupos de jovens não vivem sem isso.
Tudo isso de que falo pode parecer apenas a frustração de um ogro, cuja imagem nem cabe numa telinha... Na verdade, convivi com uma geração que não se preocupava tanto com a estética da imagem, e sim com a estética das palavras. Para isso, bastando ler. Qualquer coisa, de bula de remédio a dicionário do Aurélio.
Há quem diga que uma imagem vale mais que mil palavras. Depende muito do que se quer dizer com a imagem. Se ela está no contexto de um texto sim. Mas a imagem pela imagem é um desperdício.
Essa ditadura estética da vaidade acaba abalando até mesmo quem deveria conviver harmonicamente com os efeitos da natureza. Envelhecer virou sinônimo de morrer em vida. Daí, a beleza e a jovialidade passa a ser medida pela quantidade de silicone, ou para quem não tem dinheiro, pela quantidade de enchimentos em roupas!
Nas lojas, as “desbundadas” podem encontrar inclusive enchimentos para os glúteos! Estão nos roubando até a possibilidade de adorar uma beleza natural, já que às vezes podemos estar admirando um belo par de silicones ou um enchimento de nylon.
Entretanto, o que há de mais no corpo, às vezes tem de menos na cabeça.
Daí a existência de playboys com seus carrões envenenados, com aparelhagens a mil decibéis infernizando nossos ouvidos. Pobres meninos, que provavelmente são pouco desprovidos de tutano e músculo peniano, precisando compensar com suas aparelhagens. A sociedade tolera o abuso, mas de vez em quando a Justiça freia os ânimos narcísicos que invadem o direito dos outros.
Mas esqueçam o que eu digo. Daqui há pouco serei chamado de despeitado, mesmo que me considere um narcisista.
É que para mim o que vejo no espelho é bonito. Por dentro e por fora, sem precisar de enchimentos ou de sons em alto volume...
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(*) Artigo inserido no dia 17.07.2007, em minha coluna semanal Perípatos, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará. A gravura é uma reprodução da obra de Caravaggio.