domingo, 30 de março de 2008

O fusquinha flamejante e o “complexo de ocarub”(*)

Brasileiro gosta de carro, é o que dizem as propagandas por aí. E talvez seja verdade. Pelo menos da minha parte nunca tive objeção a essas máquinas. Mas minha relação com carros tem seus altos e baixos...
Lembro do primeiro carro da família, um Corcel de duas portas comprado no início dos anos 70. Foi nele que tomei algumas aulas de como... não dirigir.
Meu pai me botava no colo (era muito baixinho para pisar nos pedais) quando íamos para as praias fora de Belém (Marudá era a preferida) e me deixava segurar o volante na estrada. A intenção era que eu ganhasse confiança e pudesse ter senso de direção, no carro e na vida. Mas acho que até hoje meu senso de direção ainda é meio atabalhoado. Assim, depois de várias vezes em que escapei de arrancar algumas árvores pelo caminho fui proibido pela família, em votação unânime, de voltar a sentar no colo do papai-motorista.
Mas não escapei de acidentes automobilísticos, apesar de não estar no volante. Foram dois, sempre, na estrada entre Belém e as praias. Saí ileso nas duas vezes, mas vi algumas pessoas da família feridas. Pelo menos não aconteceu fatalidade maior. No último, o Corcel virou uma sanfona e eu fiquei preso nas ferragens, mas sem me machucar.
Talvez por isso, criei um certo complexo com carros por algum tempo. Aos 21, resolvi ter uma velha Mobyllette (aquela da minha estréia como repórter, que já contei aqui). Era o começo de minha paixão pelas duas rodas. Além dela tive duas Honda CG 125 e achei que não precisava de quatro rodas. Me bastavam os quatro olhos... Até que um dia caí de quatro por um velho fusquinha azul, anos 70, que acabei arrematando por uma bagatela.
Isso aconteceu quando resolvi ter uma família no início dos anos 90 e o fusquinha veio a calhar. O problema é que ele vivia mais tempo na oficina do que rodando por aí. Tinha um problema crônico que ninguém conseguia resolver: vivia pegando fogo, sozinho! Acho que ele tinha um complexo de Tocha Humana, aquele personagem do Quarteto Fantástico. “Tem que trocar a fiação”, me dizia o eletricista toda vez que eu levava para fazer um reparo. Como custava caro e eu não estava nadando em dinheiro, ia adiando o serviço à base de gambiarras.
Além do complexo flamejante, meu carrinho conviveu por um bom tempo com outro complexo que todo santareno tem ao andar nas nossas maltratadas ruas e que foi detectado por um professor de Latim que tive na UFPa. (Raimundo Nonato) que vivia dizendo: “o pior dos buracos de Santarém é que ninguém faz recapeamento geral do asfalto: só se faz operação tapa-buraco”. Daí, segundo ele, surge o que ele chamava de “complexo de ocarub”, que nada mais é do que um palíndromo dessa palavra, ou seja, um buraco ao contrário! “Pior que um buraco – dizia o professor - é o buraco apenas tapado que cria dezenas de obstáculos nas ruas e que acabam com a suspensão dos carros”.
Ele tinha razão. Para andar em Santarém um carro comum sofre muito, ou desviando de buracos ou trepidando sobre centenas de “ocarub”... É o primeiro cartão-postal que qualquer visitante da cidade logo conhece ao descer do aeroporto! Triste realidade dos trópicos!
Mas voltando ao fusquinha, seis meses depois e pequenos incêndios aqui e acolá, achei que era hora de passá-lo adiante. Um mecânico me ofereceu uma ninharia por ele, mas resisti. Um certo dia dava voltas pela cidade, ciceroneando meu irmão recém-chegado a Santarém. De repente, o carro parou num bairro de periferia: prego de português! Estávamos sem gasolina!
Lá fomos nós, empurrando o carro pelo areião até o próximo posto. Chegamos ao local num dia em que um caminhão fazia o abastecimento do posto e vários carros aguardavam a vez. O cheiro de gasolina era intenso. “Bota dez reais!” (era o que eu tinha no bolso), disse ao frentista que me pediu para esperar um pouco enquanto atendia outros clientes. Meu irmão de língua pra fora já estava arrependido de me visitar. O calor era intenso e enquanto aguardávamos o atendimento do frentista virei a chave na ignição ligando a bateria, para acionar o ventilador. Meu irmão foi tomar um refri e eu sentei no fusquinha admirando a movimentação, meio que inebriado com a gasolina.
De repente, vejo meu irmão correndo em minha direção, fazendo sinais desesperados. Frentistas correram do posto para a rua! Motoristas abandonaram seus carros! E eu sem entender nada, até sentir um cheiro já conhecido: o fusquinha havia começado a pegar fogo, dentro do posto de gasolina!
A labareda subiu pelo teto, já chamuscado. Desliguei a chave e peguei o extintor, mas estava vazio! Os homens gritavam “sai daí!”. Meu irmão veio me acudir. Desesperado, peguei um carote com água perto de uma bomba de gasolina e apontei em direção ao fogo, mas um frentista gritou agoniado “isso é querosene!”. Parei no meio do caminho.
Até que meu irmão teve a idéia salvadora: correu para a rua – sem asfalto – e carregou uma pequena quantidade de terra do areião com as mãos espalmadas em concha e jogou sobre o fogo. Fiz o mesmo e os frentistas também. Depois de alguns minutos e milhares de palavrões, conseguimos debelar as chamas. Não entendi porque os frentistas não me permitiram mais colocar gasolina... E lá fomos, eu e meu irmão, empurrando o fusquinha até o próximo posto...
No dia seguinte vendi o carrinho por uma ninharia. Meu irmão nunca mais quis andar de carro comigo.
Só recentemente resolvi comprar um carro com menos problemas. Continuo enfrentando apenas o “complexo de ocarub”. A gente acaba se acostumando com a herança que nossos administradores deixam a cada governo. Pelo menos incêndio, nunca mais.
É bom andar no meu carrinho e rir dessa história, relembrando o velho fusquinha flamejante.
Mas espera aí, que cheiro é esse?...
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(*)Artigo inserido esta semana em minha coluna semanal Perípatos, publicada no encarte regional Diário do Tapajós, do jornal Diário do Pará. A "tentativa de charge" foi mal feita por mim, um péssimo webdesigner, a partir de fotos montadas.

domingo, 16 de março de 2008

30 anos de Santarém – uma viagem inesquecível! (*)

Essa é a primeira postagem no blog em 2008 e o texto marca também minha volta ao encarte regional do Diário do Pará.
Andei muito ocupado nesse início de ano e só agora começo a organizar meu tempo. Espero poder retomar o mínimo de um ritmo de postagens, principalmente este mês quando o blog completa 3 anos no ar (em 31.03).
O texto marca meus 30 anos de Santarém, como você pode ler a seguir:



Era uma manhã do dia 15 de março de 1978. Pela primeira vez eu pisava em solo santareno, exatamente no píer do cais do porto onde ancorou o N/M Augusto Montenegro (na foto um dos catamarãs da Enasa, o "Pará", do mesmo modelo do "Augusto Montenegro"), um dos velhos trambolhos da Enasa que já não navegam mais, proveniente de Belém.
Era o fim de uma viagem inesquecível – e atropelada – e o início de uma nova jornada em minha vida, poucos meses antes de completar 15 anos. Mas chegar em Santarém foi uma verdadeira odisséia amazônica! E é sobre essa viagem que vou escrever aqui, depois de tanto tempo longe das crônicas...
A decisão de minha família deixar Belém e vir parar em Santarém foi tomada em 1977. Naquele ano, os negócios do velho grego Georgios Joannis Ninos, meu pai, iam de mal a pior. Fechara seu grande comércio – duas lojas num mesmo ponto comercial, o restaurante Nino-Lanche e o Nino-Tex, venda de confecções. Era praticamente o único ponto que não tinha um banco ou financeira na 15 de novembro, onde se concentravam as principais agências bancárias no comércio de Belém.
Um dia recebi a notícia: vamos viajar à Santarém. Mas onde diacho era isso? Relutei, chorei, mas não havia jeito. Meses depois lá estava eu e meu pai embarcando no N/M Augusto Montenegro... Os outros iriam depois.
Era uma noite de 10 de março de 1978, sexta-feira. A previsão de chegada a Santarém era no dia 13, segunda-feira, quando deveria me apresentar num colégio chamado “Rodrigues dos Santos”. Como era muito supersticioso logo profetizei: “dia 13? Vai dar azar... Esse barco vai afundar e pela primeira vez vou faltar à aula!” Fui repreendido pelo meu pai por não perder a mania de achar que o 13 era azar pra mim. Mas tinha minhas razões: nasci num dia 13 e sempre no meu aniversário, amanhecia doente!!! Só podia ficar impressionado com a “coincidência”....
Mas a viagem começou maravilhosa. Serpenteávamos pelo Amazonas, descendo até sua parte mais baixa e víamos a selva como nunca havíamos visto: colorida, intensa, um verde vagomundo como descrito por Benedito Monteiro.
Mas a maravilha que nos cercava não era a mesma do barco. Já nessa época o velho catamarã estava bem sucateado e o serviço de bordo era péssimo. A comida uma porcaria. Passei mal e botei tudo pra fora na primeira noite, enquanto dormia numa velha rede! Espetáculo grotesco...
Rede lavada no dia seguinte, mas sem ter enxugado por completo. Lá vou eu dormir num corredor do barco próximo à cabine de comando para poder pegar vento e secar um pouco mais a rede. Cheirinho insuportável a me provocar as mesmas náuseas. Jejum, para evitar novo revertério em minhas entranhas. Começo a odiar essa tal de Santarém...
Chegamos à Gurupá e um incidente hilário: o navio pararia por uma hora e poderíamos esticar as pernas um pouco em terra. Vários passageiros descem e passeiam próximo ao cais. Mas eu e meu pai resolvemos andar um pouco mais. Começamos a subir uma ladeira que parecia rua principal e fomos nos distanciando. Comentávamos o que nos esperava na nova terra... Quando, de repente, o barco apitou! Lá fomos nós, ladeira abaixo, em desembalada carreira, esbaforidos, para chegar a tempo de embarcar. Quanto mais corríamos, mais o barco parecia distante... Na verdade ele já havia saído, com nossas bagagens, dinheiro e a rede vomitada! Meio metro de língua pra fora, chegamos ao cais e o navio no meio do rio. Desolação e vergonha: a profecia cada vez mais próxima. Começava a odiar ainda mais Santarém!
De repente um homem chega num jipe e comovido com nossa situação, nos chama para a única lancha da cidade. Ele mesmo guiou a lancha e nos levou até o navio que parou para nos esperar. Soubemos depois que o homem era o prefeito da cidade (o nome, não recordo)! Não se fazem mais políticos como antigamente...
A viagem prossegue e na madrugada do dia 13, quando estávamos nos limites do município de Prainha, a catástrofe: o navio bate sua quilha em uma grande tora de madeira dessas que viajam rio afora! O comandante joga o barco à beira e o encalha num banco de areia. Estou dormindo e quase todo mundo acorda para ver o que aconteceu. Um idiota passa na minha rede, me sacode com força e grita em meus ouvidos: ”Acorda, moleque! Estamos afundando!” Imaginem despertar desta forma. Choroso e com medo (eu nem sabia nadar) busco meu pai em meio a tanta gente, mas o velho Ninos, como sempre, mantém a calma e diz que está tudo bem. Mas não estava.
A água começa a alagar o compartimento dos fluviários da embarcação. Buscam um maçarico para emendar, mas maçarico não há! Tentam pedir socorro pelo rádio, mas o rádio quebrou! E agora, João? A profecia se cumpriu?
Como sempre, o brasileiro é criativo e os fluviários usaram seus colchões para tapar o buraco da quilha. Depois de quase um dia e meio parados, surge um outro barco que nos reboca até o destino final. Ainda não teria um fim trágico de um Titanic... Definitivamente, eu odiava Santarém!
Quando avistei do catamarã da Enasa a frente da cidade, a primeira exclamação que me veio à cabeça foi: Égua! Eu, até então, não tinha noção do que era Santarém e tinha a mesma impressão que muitos belenenses têm até hoje: uma “cidadezinha” do interior, com apenas uma “ruazinha” e alguns casebres ou palafitas... Mas o que eu via era uma cidade grande e bonita, com uma orla invejável e muita movimentação. Foi paixão à primeira vista!
O jovem filho de um grego e de uma cabocla de Marapanim, nascido em Belém, começava a se apaixonar por uma pérola que eu nem sabia que existia. Naquele dia nascia um novo cidadão santareno, sem diploma e sem documento... Nem importava a viagem desastrada.
Santarém para mim é “Tara”, (com o “tezão”), que para quem não lembra era a fazenda de Scarlet O´Hara, a complexa personagem do filme “E o vento levou...” Ela dizia no fim do filme que podia passar pelas piores privações e fracassos, mas sempre que retornasse e pisasse em sua terra/Tara, revigoraria suas forças e seguiria em frente. Passaram-se 30 anos desde então, e hoje Belém é apenas um lugar onde vou passar férias e respirar um pouco de meu passado infanto-juvenil vivido no perímetro Praça da República/Praça Batista Campos.
Minha “Tara” é Santarém! Nos dois sentidos...
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal, publicada sexta-feira (14.03) no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.