terça-feira, 28 de novembro de 2006

A incrível história do homem-chip (*)

Estou sem celular há quase um mês desde o primeiro assalto à mão armada que sofri. Como não estava em meu planos financeiros ter que comprar um novo celular e tendo outras prioridades, vou adiando esse investimento ad eternum. Essa situação tem me causado um certo constrangimento, afinal o domínio da tecnologia nos dias de hoje, mesmo para os padrões amazônicos, é avassaladora e não estar “conectado” com o mundo através de um mísero chip passa a ser um atestado de incompetência. “Como você pode ficar sem celular?” ou “Ainda não tens internet em casa?”, são algumas das cobranças que recebo diariamente de alguns colegas ao constatarem minha inapetência tecnológica.
Na verdade, eu mesmo sinto a falta do suporte tecnológico em minha vida nas 24 horas do dia, afinal desde que aprendi a lidar com o computador usando o antigo sistema operacional MS-DOS e o editor PC-COM (isso nos idos de 90) nunca mais fui o mesmo. Hoje em dia não percebo o passar das horas à frente de um monitor, seja para escrever um artigo como esse, seja para consultas no trabalho, seja para “flutuar” na internet.
Essa minha paixão tecno-edipiano-platônico-voyeurista me acompanha desde a mais tenra idade quando mantive um “tórrido romance” com Zenith, uma televisão de 21 polegadas que foi minha babá digital nos idos de 1970. Ela praticamente me alfabetizou ao introduzir-me no mundo encantado de programas infantis (na época, mais inteligentes) como Vila Sésamo e a primeira versão do Sítio do Pica-pau Amarelo. Zenith era uma mulata rechonchuda cheia de válvulas. Sei disso porque um dia, aos 10 anos, resolvi “consertá-la” sozinho. Só não sei porque depois que fechei a tampa, muitas válvulas sobraram e ela nunca mais quis funcionar... E nem porque levei uma homérica surra do meu pai depois disso!
Já nos meus primeiros anos de Santarém (a partir de 1978) ocorreu um importante hiato de tecnologia em minha vida. Foi quando aprendi a nadar no rio Tapajós, jogar bola no asfalto e praticar militância nos bairros da periferia. Parecia que existia um mundo além da tela da televisão que eu não conhecia em Belém. Aboli a tecnologia radicalmente. Foi dessa época minha decisão de jogar o velho Seiko-cebolão do braço (aprendi com um velho amigo comunista que “usar relógio é ser escravo das horas”).
Havia me divorciado da televisão, apesar de, de vez em quando, manter uma relação fugidia com a velha telinha. Mas como precisava “aprender um ofício” para trabalhar, fui parar na velha escolinha de datilografia da professora Joana D´arc e comecei a paquerar aquelas máquinas, que ficavam “cheias de dedos” comigo. Não fui um aluno aplicado, e o pior: meu primeiro emprego acabou sendo atrás de um balcão vendendo parafusos e andando de bicicleta para fazer cobranças, o que me levou a não treinar o pouco que havia aprendido. Hoje não passo de um “dedógrafo”.
Quando ingressei no jornalismo como repórter da Rádio Rural, em 1984, minha paixão com a tecnologia se renovava. Voltei a me relacionar com as máquinas, por dever de ofício. Me apaixonei por uma Olivetti Lettera 32, minha companheira diária. Isso, sem contar com todas as parafernálias do estúdio (microfones, gravadores e rádios, todas de marcas estrangeiras), além do inseparável comunicador BTP Motorola para os famosos flashes ao vivo. Voltava a respirar tecnologia!
Mas voltando ao relato inicial, creio que nestes tempos hodiernos (adoro dessa palavra) viver sem tecnologia parece um absurdo. Dia desses, assistindo um documentário no Discovery Channel, fiquei impressionado com o avanço da nanotecnologia e sua importância para o homem do futuro. A matéria mostrava experiências com cápsulas contendo um pequeno chip que, introduzidas no corpo humano por via oral, poderão facilitar uma verdadeira viagem no interior do corpo humano para rastreamento e cura de determinadas doenças, algo como o que já havia visto num antigo filme de ficção científica, “Viagem Fantástica” (de 1966, com Arthur Kennedy e com o remake mais pro lado da comédia, “Viagem Insólita” de 1987, com Dennis Quaid e Meg Ryan), onde um submarino miniaturizado penetrava na corrente sangüínea de um cientista com a missão de alcançar seu cérebro e dissolver um coágulo que ameaçava sua vida!
Fico imaginando que não deve demorar muito para que produções ficcionistas do cinema e da TV se tornem realidade. Quando garoto, era fissurado pelo “Homem de Seis Bilhões de Dólares”, uma série da TV sobre um astronauta que perdia partes de seu corpo numa viagem ao espaço, sendo estas substituídas por mecanismos que o tornaram um quase-andróide. Creio que essa idéia inspirou também, o famoso “Robocop, o policial do futuro” dos anos 1980.
Quem sabe eu poderia ser cobaia de uma experiência como essa? Imaginem a notícia dada por um destes tablóides sensacionalistas:
A incrível história do homem-chip.
Um jornalista depois de assaltado perde seu celular. Dias depois seu computador pifa e, desconectado do mundo não atualiza seu Blog, seu Orkut, seu Flog, nem tampouco lê ou recebe e-mails.! O homem passa a ser ridicularizado por todos, que o apedrejam com celulares quebrados, controles remotos com defeito e máquinas digitais já sem uso (“Joga bytes na Geni”, eles cantam). Humilhado, o homem vive ao relento, dormindo entre monitores queimados e teclados já sem uso. Alimenta-se de mouses e pilhas sem bateria. Vaga pelas ruas da cidade implorando uma esmola: - Um cartão telefônico, pelo amor de Deus!
Um revolucionário padre, dirigente da ONG Finda - Frente de Inclusão Digital da Amazônia, recruta o indigente e o leva a um laboratório onde será usado para uma experiência única: tornar-se o homem-chip para liderar o MST – Movimento dos Sem-Tecnologia!
No lugar dos olhos e da boca, uma webcam 350k pixels USB com microfone embutido; As orelhas viram potentes caixinhas de som 5.1, surround; os cabelos são mini-antenas; e no cérebro um potente chip de silício com capacidade para dezenas de Wektabytes de memória RAM! Com toda essa potência, ele passa a insuflar as massas e organizar assentamentos tecnológicos, invadindo estações de TV e provedores de internet. Celulares serão expropriados da burguesia. Televisores virarão reféns dos “indigitalizados”. O caos tecnológico será instalado e...
Voltando à realidade, tal qual o homem-peixe, o homem-chip ainda não existe. Mas quem sabe um dia se materialize? Até lá, terei que me contentar em ser apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso, como diria o velho sábio Belchior.
Alguém me empresta um cartão telefônico, ai?
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada hoje no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Água!!!!


O jornalista Milton Corrêa (foto), o popular Miltinho, editor do programa Rota 5 (TV Ponta Negra) e colunista de O Impacto, parece que acordou enfesado com a falta d´água em nossa cidade e resolveu "soltar os cachorros" para cima da Cosanpa e da passividade do povo diante desta tragédia urbana que Santarém vive há 30 anos!
Como acadêmico do curso de Jornalismo do Iespes, Miltinho escreveu um artigo irado lá no blog da turma. Vale a pena conferir, clicando AQUI.
E se você quiser recordar o que eu já falei sobre o tema há um ano atrás aqui no blog, clique AQUI.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

O mestre do fogo e senhor dos quintais (*)

Há mudanças que vem para o bem, outras não. Mudar de casa pode significar não tão-somente mudar de ares, como também de hábitos. No meu caso, especificamente, cada mudança de endereço que tenho feito nos últimos 15 anos (desde que formei uma família) significou um alento de página virada. Há momentos em que para recordar um determinado fato basta associar à casa que morei à época do fato (“O filho caçula nasceu na Aldeia ou na Prainha?” e “Qual era a nossa casa quando a filha mais velha passou no vestibular?” ou ainda, “Onde assistimos aquele jogo em que o Roberto Carlos arrumou a meia e deixou o francês meter um gol?”).
Mas se existe uma coisa nesse negócio de mudar de endereço que é estressante, é a própria mudança. O dia da mudança: o caminhão velho, o colchão velho à amostra, o cachorro estressado que não pára de latir, o carregador que despenca com o guarda-roupa, o cachorro estressado correndo atrás do carregador, o motora querendo apressar a mudança para pegar outro carreto (e se possível, evitar que consigamos transportar tudo de uma vez), a filha que vê a caixa de esmaltes cair na calçada, aquela cueca que não devia ficar à mostra, o cachorro estressado mordendo o próprio dono, os vizinhos olhando o pandemônio, o carregador derrubando mais um armário, o fio do telefone que insiste em se enroscar no armário mal arrumado, o carregador cantando a empregada enquanto o fogão despenca da carroceria, o cachorro estressado correndo atrás do vizinho, o filho caçula deixando a caixa de cd’s se espalhar na rua, o carregador usando Neruda como suporte do armário mal encaixado, o cachorro fugindo para a rua vizinha com os filhos atrás...
Visão do inferno! A chegada ao novo endereço é sempre acompanhada por olhos atentos. Os novos vizinhos julgam quem chega pelo que desce do caminhão. Caixa de livros: será que ele é juiz, promotor advogado ou professor? E a mulher, será que vai bater papo com a gente sobre a novela das oito ou não colocará o nariz fora da porta? E os filhos? Serão anjinhos ou demônios? Cachorros? Seis? Não é possível! Será que eles têm muitos bens para guardar? Computador? Serão intelectuais, ou gostam só de sites pornô na internet? E o que é aquele colchão todo esfarrapado, gente?
Passado o susto inicial, alojam-se os móveis, arrumam-se os livros, o sofá, a televisão, uma pizza e o resto fica para amanhã... Primeiro fim de semana na casa nova é sempre a mesma coisa: rearrumar tudo quase do mesmo jeito que estava na casa anterior, apesar de nos sentirmos totalmente renovados com o novo espaço...
Na última mudança que fizemos, acerca de duas semanas, resolvi cooperar um pouco mais com a ordenação do espaço do que o normal. Tomei conta do quintal e ajudei os filhos a capinar e queimar o mato. Trabalho duríssimo para um pseudo intelectual sedentário que mal afasta o traseiro de um computador. Meu cotidiano é marcado pelo cansaço mental e pelo acúmulo de calorias pelo corpo mal ajambrado. Assim, capinar um quintal é uma tarefa parecida aos Doze Trabalhos de Hércules.
Primeiro, “penteio” o mato com um ancinho. Junto montes de folhas secas, carrego pedaços de madeira e formo monturos. O filho caçula acompanha. O mais velho, com terçado, explora a ala oriental do grande quintal derrubando touceiras de flores já mortas e seus espinhos vivos. Formigas-de-fogo disputam o mesmo espaço conosco. Nosso novo latifúndio nos faz sentir num ínfimo pedaço de floresta amazônica no coração urbano da cidade.
A tarde vai terminando. O monturo de restos de quintal já se avoluma no centro. Os meninos esperam a ordem do “senhor dos quintais” para tacar fogo. As labaredas logo surgem e o fascínio toma conta de nós. Esse artigo nasceu neste momento. Enquanto as chamas crepitavam e transformavam em cinzas o que ficou depositado no chão do quintal, nossos olhos se iluminavam e de repente, continuávamos aumentando o monturo, assim que ele baixava.
Sobre as cinzas mais folhas e gravetos, pedaços de madeiras. Novas chamas, faíscas, fumaça. O poder do fogo inebria. Os meninos se cansam da brincadeira, mas o menino que existe em mim não consegue parar. Freneticamente continuo alimentando aquele fogo que parecer surgir de dentro de mim.
O corpo cansado encontra forças para se arrastar por entre os mais de trinta metros de quintal em busca de gravetos e folhas. E se há algum matinho que ainda não viu ancinho, lá estou eu arrancando ervas daninhas, restos de troncos. Como se estivesse petrificado pelo poder do fogo, me recuso em deixá-lo apagar.
Me sinto o próprio “mestre do fogo”. Um Hades tupiniquim que não ouve quando a família chama para degustar mais uma pizza. A noite caiu, mas o fogo não. Se depender do “mestre do fogo e senhor dos quintais”, não!
Os olhos lacrimejam, os braços fatigados continuam a arrastar o ancinho. A pá já não levanta as folhas com o mesmo poder, mas o fogo continua impulsionando meu ser. Porque será que o fogo tem esse poder de arrancar de um pacífico cidadão a vontade de queimar pobres folhinhas mortas? Seria eu uma reencarnação de um inquisidor Torquemada, olhando aqueles hereges gravetos farfalharem ao contato combustível e tornarem-se cinzas que o leve vento carrega?
Nem me importo com os vizinhos, que já devem estar incomodados com os rolos de fumaça penetrando suas janelas. Boas vindas estas! Meu lado Nero não deixa folha sobre folha no quintal. Ao final, exausto, olho minha “obra”: um quintal limpo e preparado para receber meu seis cachorros!
À noite durmo e tenho pesadelos: gravetos ensandecidos com o rabo em chamas me perseguem. Vizinhos riem e ao invés de água jogam gasolina sobre mim. Escorrego no quintal e resvalo por um buraco que me leva ao formigueiro. Sou recebido por formigas-de-fogo que me aplaudem. Me sinto o novo senhor do fogo, estendo as mão e me jogam uma tocha que me queima!
Acordo em pé na cama com a lâmpada quente na mão. O cachorro late e avisa que é hora de voltar ao cartório. Já não sou senhor dos quintais. No máximo senhor da burocracia. Que vontade de tocar fogo naqueles malditos papéis...
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada hoje no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Agradecimentos

Agradeço aos elogios e à solidariedade de todos que leram o artigo anterior.
Todos os comentários que recebi, seja no blog, seja por e-mail, estão na caixinha de comentários abaixo do texto, com os devidos agradecimentos. Vale a pena ler alguns... E quem quiser pode continuar comentando, que eu responderei lá mesmo...
Posso dizer que para um "ex-virgem" em assaltos, tive um bom acompanhamento psicológico...

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Reflexões de um neo-assaltado beijando o asfalto

Sempre me gabei de nunca ter sido assaltado em toda a minha vida, fosse no Brasil ou no exterior por onde andei. Na verdade sentia uma ponta de inveja dos colegas que me relatavam os assaltos sofridos e tentava esbanjar um ar de superioridade diante de minha “virgindade” no assunto. Isso acabou me fazendo sentir até discriminado em certas rodas e me levou a imaginar o que pensavam de mim os que já haviam passado por essa experiência (“você não é digno de conviver em nosso meio, seu... “desassaltado”!).

Por conta disso, vivia imaginando qual seria minha atitude diante de um assalto à mão armada. Daria uma de galã hollywoodiano e sairia dando sopapos no “meliante”? Dialogaria com ele e o convenceria a deixar sua vida marginal? Ou apenas me borraria de medo e suplicaria pela minha vida, tentando convencê-lo de que quatro bocas me esperavam famintas em casa? Toda minha dúvida existencial sobre o tema caiu por terra, literalmente, quando fui obrigado a deitar no chão por um assaltante armado na noite da última segunda-feira (06/11/06).

Como todas as noites, sai da faculdade onde estudo e me dirigi ao cyber-café (aliás, porque se chamam cyber-cafés se nem café têm para vender?) mais próximo para atualizar um de meus blogs na internet. Nesta noite, tinha a parceria de um dos colegas de turma, Joyciano Marinho, que como eu era também neófito na condição de assaltado. Após visitarmos o blog da nossa turma de jornalismo, descemos pela mesma rua escura que tantas vezes passei, em direção à minha casa. O papo acadêmico fluía entre abobrinhas da sala de aula e a divagação sobre os problemas do mundo. Eis que surge em nossa frente a realidade nua e crua, da qual só conhecíamos através de relatos ou de filmes.

O assaltante, um garoto de pouco mais de 20 anos, poderia ser meu filho ou irmão de Joyciano. Do alto de sua figura magérrima, o rompante de senhor de nossas vidas com uma arma na mão: “Mermão, vamu deitando no chão e passando a carteira se não passo bala!”. Estáticos, fomos aos poucos entendendo que acabávamos de entrar nas estatísticas de vítimas de assalto. Pensei comigo: vibro por não ser mais “diferente” dos meus colegas assaltados e abraço o ladrão por me proporcionar este momento ímpar ou simplesmente desmaio? Nem me lembrava das opções anteriores. Minhas pernas bambas não permitiam esboçar qualquer reação hollywoodiana. Mal consegui envergá-las para me ajoelhar. Mãos na cabeça, prostramo-nos no frio asfalto da rua deserta e mal iluminada. Literalmente, beijamos o asfalto. A sensação era narcotizante. As palavras do garoto, soltando impropérios soavam longe. Me lembrei de um dos únicos porres que tomei na vida quando adolescente: enquanto levava um pito, minha cabeça parecia os carrilhões de Nazaré no dia do Círio em Belém.

“Tira a camisa, mermão, mas num olha pra mim”, vociferava nosso algoz. Arrancamos as camisas pólo suadas e sujas de terra e jogamos em sua direção. “Camisa é melhor no mato”, filosofa nosso pivete ensandecido, antes de arremessá-las em direção ao muro que margeia a calçada maltratada, tomada por arbustos. “Cês também, pro mato e sem olhar pra mim”, sentencia nosso feitor da meia-noite. “Num sou daqui e tô fazendo uma “limpa” na área, mermão!”, explica ele.

Sentimo-nos io-iôs nas mãos do assaltante. Continuamos calmos, apesar de, passado o susto inicial, já alimentarmos um certo ódio e uma vontade louca de atacá-lo. Mas entre nós dois e ele há uma arma apontada, reinando soberana e doida para fumegar ao menor vacilo. Prostrados, agora no mato, ouvimos o garoto sofregamente buscando dinheiro nos porta-cédulas. Encontra dois míseros reais que eu ainda carregava no final da noite e os surrupia. De repente, encontra algo que lhe chama a atenção: um porta-documentos com brasão da República, usado geralmente por funcionários públicos da área de segurança. A cor vermelha do couro parece acender no assaltante o ódio de Aris, o Deus da Guerra na mitologia grega, ao gritar de forma sarcástica e meio tatibitate: “O que temos aqui? Um PM! Já “puxei” cadeia e tenho raiva de PM. Acho que hoje vou matar PM”. Pela primeira vez, sentindo o perigo rondando minha cabeça, falo com firmeza em direção ao assaltante dizendo que não sou da PM e sim funcionário da Justiça. Caio em mim, ao pensar que o dito cujo não deveria diferenciar um do outro. “Cala a boca! Eu atiro!”, grita ele.

Me calo com as mãos na cabeça. O sangue parece querer explodir minha cabeça antes da bala que acho estar a caminho. Tento pensar nos filhos que tenho, no livro que não escrevi e na árvore que ainda não plantei. Talvez seja tarde para todos os arrependimentos. Quão pequeno sou naquele momento! Minha vida pouco vale diante da sanha de um menino criado nas ruas, adotado por traficantes, marginal de uma sociedade hipócrita. De nada me adianta filosofar. A morte parece certa.
“Bora, mermão, pega as bolsa e joga os celular, rápido!” O assaltante me desperta, clemente, dando-me mais uma chance de viver minha miserável vida. Basta eu me livrar do pequeno aparelho que trago na bolsa e que para ele pode representar um alívio em forma de drogas a serem trocadas em qualquer boca-de-fumo das redondezas. Rapidamente tiro o celular e jogo, sem levantar a cabeça. Meu colega, renitente, acaba cedendo e também joga o seu. Não vejo o semblante de Joyciano mas imagino seu rosto, sempre compenetrado em sala de aula lendo Aristóteles ou Nietzche, fazendo um esforço para entender tudo aquilo. Antes de sermos abordados, me falava de projetos ambientais sustentáveis para melhor a vida dos nativos da região e evitar injustiças sociais.

Foram-se os celulares, ficaram os ouvidos e bocas. Um último recado de nosso verdugo ao tucupi: “Tô saindo, mas vou ficar de olho em vocês. Se levantarem a cabeça, ficam sem ela”. Poesia marginal?

Os minutos em que ficamos parados naquele mato, sem camisa e sem celulares, pareciam eternos. Nenhum de nós tinha coragem de olhar para cima. Talvez quiséssemos dormir ali mesmo e acordar achando que tudo não passou de um pesadelo. Levantamos e caminhamos como dois perdidos numa noite suja, rumo à Seccional de Polícia a um quilometro dali. Tentamos entender cada um dos segundos de agonia e o que poderíamos ter feito. Cada um de nós com um sentimento de ódio mesclado ao alívio de sentir a cabeça no lugar. Concluímos que não fazer nada, fez a diferença entre a vida e a morte.

Minha relação com o submundo do crime, até hoje, sempre foi de caráter profissional ou voluntário, seja como repórter policial no início de minha carreira jornalística, seja como escrivão judicial atualmente, acumulando com a função social de membro do Conselho da Comunidade. Nunca cara-à-cara, na condição de vítima. Antes visitava presos nas delegacias. Hoje percorro corredores da penitenciária de Cucurunã conversando com caras amontoados em celas fétidas que vêem em mim sua única esperança de contato com o mundo lá fora. Talvez esse menino já tenha estado numa dessas celas. Se não esteve, quem sabe um dia estará, e eu o ouvirei, tirando dúvidas sobre seu processo.

A noite continua. Outros assaltos ainda acontecerão. Gente há de morrer e sobreviver. Essa é a lei da selva capitalista. A nós, resta acreditar que nossa hora ainda não chegou...

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Em defesa de Odair

O empresario Olavo Neves comenta a nota anterior:
Amigo Ninos,
Tenho acompanhado com grande apreensão inúmeras cobranças disparadas ao atual Vice-Governador sobre seu posicionamento acerca da questão Estado do Tapajós.
Ora, creio que Odair já deu inúmeras provas de seu comprometimento com a causa, e cobrança deste assunto é contraproducente no momento, pois tal anseio de nossa região é rejeição certa na grande parte do Estado (pelo menos por enquanto!).
Precisamos aprender a trabalhar estrategicamente. Colocar o atual Vice-Governador em saia justa seguramente será extremamente danoso para sua imagem e conseqüentemente para nossa região; e como resultado o distanciamento ainda maior da realização de nosso grande sonho.
Lembremos que Odair é Vice-Governador do Estado e, como tal, seu compromisso é para com todo Pará.
Vamos ser inteligentes e negociar nossos interesses de forma adequada, pois acredito piamente no comprometimento de Odair com nossa Santarém e Região.
Já diz um provérbio chinês: - “Duas mãos devem estar mais ocupadas que uma língua”.
Forte Abraço!
Olavo das Neves
Comentario: concordo plenamente com Olavo e em nenhum momento pensei em colocar Odair em saia justa. Muito pelo contrario. Acho que ele tem muito a contribuir com a luta da posicao em que esta, sem precisar se expor demais. De qualquer forma obrigado por comentar, o blog ja estava com saudade de sua presenca...

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

O dia seguinte à democracia multicolorida que invadiu as ruas da cidade

A frieza dos números dos candidatos aliada à complexidade de siglas com letras que nada nos dizem, fazem do processo eleitoral brasileiro, há cada dois anos, um emaranhado de promessas com rostos que conhecemos de outros carnavais. O palanque eletrônico, das rádios e TV’s, nos apresenta homens produzidos a partir de idéias mirabolantes ou não, que tentam traçar um destino que sequer temos certeza se queremos para a nossa cidade ou nosso país.
Este ano, mais uma vez enfrentamos este processo que começa sempre um pouco antes das férias de julho, em convenções partidárias onde inimigos de ontem podem ser aliados de amanhã e vice-versa, desembocando no dia da eleição que em alguns casos tem até repeteco (o tal do 2° turno), como ocorreu domingo em todo o Brasil na eleição presidencial e em especial nos 10 estados (incluído o Pará) que escolheram governadores.
A democracia é necessária e está além dos palanques. Nasce nas ruas, onde a liberdade de expressão é multicor. Militantes pagos ou não, tentam nos convencer com a fusão de cores entre amarelo, vermelho e outras predominantes das ideologias existentes, que cada proposta é melhor que a outra. Mas o que importa mesmo é o dia seguinte à apuração das urnas.
Fiz um perípatos pela cidade antes e depois da apuração no domingo. Reencontrei velhos amigos conduzindo bandeiras nunca dantes levantadas e outros que ainda agarram-se às mesmas idéias de todo o sempre. A razão é pura emoção e não importa a cor das ideologias. Não importam os vencedores ou os supostos derrotados porque – abusando do lugar-comum – todos são vitoriosos.
Às cores partidárias juntam-se os números das pesquisas, os comentários de quem tenta entender tudo, os resultados que podem até surpreender. O sorriso e o desespero da militância são coloridos.
Deixando de lado a divagação em prosa poética, falemos dos resultados concretos: o vermelho do PT se sobrepôs ao amarelo do PSDB que já vinha se desbotando ao longo dos últimos 12 anos no Pará, mesma situação já verificada em nível nacional e municipal em eleições anteriores. Esse novo predomínio “encarnado” cria uma sensação favorável ao futuro de Santarém, algo que já vem sendo chamado de “alinhamento cósmico de estrelas petistas”, no caso, o presidente reeleito Luis Inácio Lula da Silva, a governadora eleita Ana Júlia Carepa e a prefeita de Santarém Maria do Carmo que tenta se livrar de um mórbido ocaso.
Além de Ana Júlia no governo estadual, Santarém e a região Oeste do Pará terão um legítimo representante ao lado do gabinete da governadora, seu vice, o santareno Odair Corrêa. Sua eleição é ainda mais emblemática por conta do que ele representou em todos estes anos, participando da organização de um dos vários comitês surgidos por aqui para discutir o projeto de emancipação política da região, com a criação do tão sonhado Estado do Tapajós. Mas que ninguém se iluda que esse discurso permeie os atos de Odair após a posse. Ao jurar sob a Constituição do Pará ele e a governadora (como qualquer um que se eleja a esse cargo), assumem o compromisso pela indissolubilidade do Estado do Pará.
A verdadeira contribuição dos dois será impedir que as políticas do Estado se concentrem apenas na capital como nos governos anteriores, deixando que as regiões culturalmente distintas entre si tenham a possibilidade de discutir o processo de redivisão ou reorganização das unidades federativas da Amazônia, iniciado ainda no Brasil-Império quando a grande Província do Grão Pará e Maranhão transformou-se em pelo menos três Estados: Amazonas, Pará e Maranhão.
A tarefa de mobilização em torno desta idéia ficará por conta dos deputados eleitos ainda no primeiro turno, que só no Oeste do Pará representam quase 25% da Assembléia Legislativa. Mas será que esta união ainda é possível diante do resultado desta eleição? As “bancadas separatistas” do Oeste e do Sul do Pará serão hegemônicas ou as cores partidárias voltarão a influenciar essa ideologia capenga?
O fato é que as cores nem sempre formam um belo arco-íris, que aliás sempre foi o sinal de que depois da tempestade vem a bonança.
É bom lembrar que logo após as eleições, onde a democracia multicolorida fez a festa, chegam dias que representam o lado negro da força: além da festa das bruxas (o Halloween da cultura ianque), nesta semana os dias de reflexão envolvem a lembrança dos mortos, o Dia de Finados, um feriado para homenagens póstumas que envolve nuvens sombrias a serem dissipadas...
Ou não...
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Esse texto deveria estar na edição de terça-feira (31/10) no Diário do Tapajós, mas por problemas técnicos no envio à Belém, a edição não circulou. Hoje, novamente ocorreu o mesmo problema e a edição também não circulou. Divulgo o texto aqui, para que não fique tão defasado. A coluna Perípatos que escrevo no jornal, volta terça-feira com outro tema.
Neste feriadão de Finados (02/11), estarei participando à partir das 08h00 da manhã do programa Mesa Redonda, da 94 FM, comandado pelo jornalista Sampaio Brelaz, que terá como tema o resultado do 2º turno das eleições. Além de mim, estarão presentes mais quatro convidados. O programa pode ser acompanhado pela internet, no site http://notapajos.globo.com/ através do link 94 FM ao vivo.