10 de julho de 2013.
Dez horas da manhã.
Dirijo meu golzinho preto 2004 (com corpinho de 2003) pela
BR-163 em direção à chácara Pouso Alto, na localidade de Cipoal. Já passamos do
posto da PRF (Polícia Rodoviária Federal) e relaxo ao volante sem precisar
segurar os 40 quilômetros por hora.
Ao meu lado, o velho grego Georgios Ninos, do alto de seus
92 anos, tenta me dar um pouco mais de suas lições. Com a mente já um pouco
fraca – pelo tempo – apesar de manter o vigor da juventude em seu corpo cuidado
à base de rígida dieta vegetariana e exercícios físicos, o velho grego tenta se
comunicar comigo em mais um dia que passamos juntos no meu período de
férias/licença do Judiciário, mas as palavras lhe faltam. Suas ideias já não
conseguem se traduzir com a mesma maestria de alguns anos. O peso da idade.
O velho Ninos e sua "gororoba vegetal" |
Tentando balbuciar algumas lições ao filho desleixado que
continua não cuidar da saúde, na semana em que este está prestes a completar
meio século de vida, o velho grego acaba me transportando para um mundo
inaudito, fazendo-me lembrar de velhas lendas da mitologia helênica que estudei
na adolescência, nos livros que ele me comprou. O carro parece flutuar,
enquanto meu pai continua balbuciando suas mesmas lições e a mitologia
atravessa à minha frente. O cavalo à beira da estrada vira um Pégaso (o cavalo
alado dominado pelo herói Belerofonte) e me transporta além das nuvens negras
de mais um dia nublado no oeste do Pará.
Me veem à mente duas dessas lendas, das mais tristes
tragédias contadas por Homero e outros escritores da antiguidade helênica. São
lendas sobre o amor e a velhice, numa Santarém de 352 anos dos quais 35 vi de
perto quando aqui cheguei, aos 15 anos adolescentes.
Sibila de Cumas e Apollo, de Giovanni Domenico Cerrini |
Uma das lendas fala da Sibila de Cumas, uma das 10 sibilas
(profetisas) do deus Apolo, que para se tornar sua esposa resolveu pedir a vida
eterna, mas de uma forma inusitada: colocou um punhado de areia em sua mão e
pediu-lhe para viver tantos anos quantos fossem as partículas de terra que
tinha ali. Entretanto, esqueceu-se de pedir, também, a eterna juventude. Com o
passar dos anos tornou-se tão consumida pela idade que teve de ser guardada no
templo de Apolo, na cidade de Cumas. A lenda diz que a Sibila de Cumas viveu
nove vidas humanas de 110 anos cada!
Aurora abandona Titono, de Louis Jean François Lagrenée |
A outra lenda grega é sobre o amor da deusa Eos (Aurora,
irmã do Sol e da Lua) por um príncipe mortal, Títono, irmão do rei Príamo, de
Tróia. Ela, um dia o raptou, casaram e tiveram dois filhos, mas enquanto Eos
conservava uma juventude eterna, Títono, por ser mortal, começou a envelhecer.
Eos conseguiu então que Zeus, o deus dos deuses, concedesse a imortalidade ao
seu amado, mas por falta de reflexão não pediu também a juventude eterna para o
amado e este envelheceu continuamente, enfraquecendo. Chegou ao ponto de ficar
pequeno como inseto encarquilhado, até que ela, penalizada, pediu a Zeus que o
transformasse em uma cigarra.
10 de julho de 2013.
Dez e cinco da manhã.
Grandes caminhões graneleiros ocupam as duas laterais da
estrada entre Santarém (PA) e Cuiabá (MT) e eu preciso desanuviar meus
devaneios mitológicos para não dar de cara com aqueles monstros de nossa
mitologia moderna, do famoso deus Mercado. Meu pai continua balbuciando suas
lições. Entre gergelins e linhaças, iogurtes e beterrabas, o velho grego para
de falar sobre as receitas de suas famosas gororobas e me emociona dizendo
“queria ter tua idade, para poder dizer o que penso”.
Entre o medo de chegar à idade dele e não poder “dizer o que
penso” e o medo de morrer antes dele pelo descuido à ditadura do regime
alimentar, escolho a vontade de viver com experiência. E quem sabe, diminuir
uns quilinhos...
Por isso, o ato de refletir sobre o meio século que completo
neste sábado, 13/07/2013, passa pela estrada trilhada pelo velho Ninos, mesmo
que eu tenha buscado atalhos diversos do dele, e que juntos possamos dizer que
cada um, ao seu modo, viveu a vida.
10 de julho de 2013.
Dez e quinze da manhã.
Entro na chácara e vejo meu pai sair do carro com uma
pequena lágrima retida no canto do olho. Os Ninos são feitos de manteiga
derretida. Choramos por qualquer coisa. E a velha desculpa de sempre: “tem
poeira aqui”. Os Ninos são orgulhosos. Não gostam de se mostrarem frágeis, mas
às vezes, se debulham em lágrimas, seja cantando uma canção ou assistindo a uma
novela na TV.
Fico parado dentro do carro por alguns instantes. Naquele
momento, as ideias para esse artigo começam a brotar. Quase todos os anos,
escrevo sobre o dia do meu aniversário como se quisesse deixar um testemunho de
mim a cada ano. Um diário de bordo de uma nau enlouquecida. Pitadas literárias
de um filho que tentou ser mais que o pai. Agora, nesse meio século, essa
relação parece ficar mais próxima, tanto quanto mais distante.
Olho pra trás e vejo toda minha existência tentando me
firmar como um cidadão de bem. Como meu pai ensinou. Como sempre me cobrou, com
puxões de orelha. Com berros. Até eu sair de casa aos 16 anos e achar que tinha
um mundo a conquistar. Foram idas e vindas de um filho pródigo, que um dia
conseguiu provar ao pai que tinha algum valor. Não porque se tornou um
jornalista, com certo prestígio, numa cidade perdida no meio do nada amazônico,
como são todas as cidades do Verde Vagomundo, do ximango Bené Monteiro. Nem
tampouco por que fez filhos e filhos perpetuando o nome, um dos orgulhos
helênicos. Mas porque, apesar de tudo, manteve a essência dos ensinamentos do
velho grego turrão, que ainda hoje quer puxar (literalmente) nossas orelhas...
10 de julho de 2013.
Dez e vinte da manhã.
Saio da Chácara de minha irmã e sigo pela estrada. Ainda
tenho um TCC de pós-graduação pra terminar. Preciso revisar o livro de poesias
que agora vou lançar (acertei tudo com o Cristóvam Sena, do ICBS). Mais um
loucura minha. [No final, por problemas de última hora, o livro foi adiado mais
uma vez]
“Queria ter tua idade, para poder dizer o que penso”. A
frase do velho grego ecoa em minha mente. Ele disse muita coisa pelas mãos. Com
seu faro de pequeno comerciante, deixou sua marca na cidade que adotou como sua. E do alto de seus rompantes de arrogância,
misturados ao velho sorriso cativante, um dia me disse: “Houve um tempo em que
tu eras o filho do seu Ninos, o homem do lanche mais gostoso da cidade. Hoje me
orgulho quando alguém me pergunta se sou o pai do Jota Ninos”. Os Ninos são
metidos a bestas.
Mesmo depois de me dizer essa frase de me deixar todo
gabola, não duvidou em me ordenar que partisse para a Grécia, antes que eu
“amanhecesse com a boca cheia de formiga”, como lhe diziam os telefonemas
ameaçadores da época em que adorava polemizar com poderosos locais, pela Rádio
Rural. “Prefiro um filho vivo sem fama, do que um filho morto famoso”,
decretou. E mais uma vez definiu meus rumos, já nos altos de meus 25 anos!
Três anos de autoexílio (1988/1991), em sua terra natal,
para evitar que minha boca expressasse o que eu pensava. Três anos de
amadurecimento, numa Grécia de encantos, onde pude respirar das lendas de
outrora e até tentar por juízo na cabeça socialista de sempre. [A Grécia de
hoje, nem de perto lembra ao menos a Grécia que eu conheci. Muito menos a
Grécia de meu pai ou a das lendas mitológicas]
Amadureci tanto que, após ter retornado ao meu “Santo Harém”
(como chamava ironicamente a cidade, em alguns artigos de jornal, à época), um
colega jornalista disse que eu havia me “despolemizado” (rs)! Afinal, um ex-militante
petista fazer assessoria de marketing para um prefeito do antigo PFL (hoje, DEM)
era o fim da picada!
10 de julho de 2013.
Dez e vinte e cinco da manhã.
O carro vai mais lento, pois a PRF é logo ali. Nada de pensar
em lendas gregas agora. Passada a barreira, começo a fazer um retrospecto do
que vivi depois de retornar da Grécia.
A carreira jornalística chegava ao limite do tolerável no
inicio do século XXI, mas o acúmulo de conhecimentos foi suficiente para
entrar, através de concurso público no Poder Judiciário, onde já atuo por dez anos como analista judiciário (“babá” de processos carcomidos pelo tempo), sem
deixar de lado a carreira de jornalismo e atuando num setor onde a comunicação
se faz presente: o Tribunal do Júri.
No final de 2009, vivi a experiência de voltar a ser
solteiro depois de 17 anos com uma família, quatro filhos, duas netas, cinco
cachorros... E aos poucos, voltei a reescrever poesias guardadas em velhos
sacos de papel. Voltei a comprar algumas brigas pelos blogs da vida. Voltei a
polemizar, até me filiando ao PCdoB, pelo qual sonhei em organizar um grupo
para mudar o status quo local, mas fracassei. Até um plebiscito pela criação de
um novo estado, enfrentei. E fracassei. E me envolvi num sem-número de
atividades como ativista cultural, ambientalista, pesquisador de história e
voltei até a ser sindicalista! E em muitas coisas fracassei. Enquanto isso o
açúcar se acumulava no sangue, até eu ser agarrado pelo mal do século: o
diabetes. E tenho tentado me curar, mas tenho fracassado. Puxão de orelha do
velho Ninos.
Aos 50 anos, chego ao terrível dilema de continuar querendo
“dizer o que penso”. Seja em um programa de rádio, seja nas redes sociais, seja
neste pobre blog, que de vez em quando abandono. Não existe fracasso quando se
quer dizer liberdade. Talvez seja uma questão de ponderar que já não tenho o
vigor da juventude para abraçar tantas causas. Então o primeiro passo talvez
seja me desvencilhar da maioria das atividades e tentar a tal “vida saudável”.
Depois do TCC de Especialização, quem sabe um mestrado e/ou doutorado? Quem
sabe um livro dois, livros? Quem sabe um filho, uma árvore?..
10 de julho de 2013. Meio
dia. De volta a Santarém. Tempo de lembrar o que tenho feito recentemente, para chegar aos 50 anos.
De um ano pra cá encontrei uma nova razão para
continuar “dizendo o que penso”. Um novo amor, que não me cobra a juventude
(plena, que já não tenho), e sim a experiência de que precisamos para os novos
tempos em que muita gente vai às ruas “dizer o que pensa”.
O que importa, nestas primeiras horas do meu meio século, é que eu não queira a eternidade por um punhado de areia nas mãos, nem tampouco sonhar em virar uma cigarra...
Eu (com cara de babaca) com minha nova razão de viver, Ana Charlene. |
O que importa, nestas primeiras horas do meu meio século, é que eu não queira a eternidade por um punhado de areia nas mãos, nem tampouco sonhar em virar uma cigarra...
13 de julho de 2013. Um
pouco mais da meia-noite. Termino o texto e revigoro o blog. O recado do seu Ninos está aí.
EU DIGO O QUE PENSO: FELIZ ANIVERSÁRIO,
SEU BABACA!
5 comentários:
Jota, chegar a meio século não é para qualquer um não!! Já passei por isso, e quando se pula esses 50, tudo fica mais novo, mais esperto, mais lúdico, mais amadurecido. As lembranças são muitas, muitas boas, ruins, engraçadas, amorosas, tristes, alegres... são histórias que ficam na mente a nos empurrar aos 100!! Jota, que novos 50 venham, não tenha medo!! Hoje, podemos ser o quer queremos, podemos dizer e falar o que pensamos sem traumas, sem mágoas, afinal já passamos dos 50.
Dornélio
Me emocionei lendo esse post pai. Te amo.
Me emocionei lendo esse post, pai. Te amo.
Parabéns Ninos. A caminhada continua. Siga em frente. Que venham outros cinquentas. Rs.
Neucivaldo Moreira
Que bela crônica que encontro nesta madrugada. Parabéns pela pena de escrever e pela pena de viver.
Postar um comentário