sexta-feira, 31 de março de 2006

Dossiê PT – estórias que não gostaria de contar

Já se vão três meses da publicação do último capítulo da saga que me propus contar aqui neste blog, sobre a trajetória do Partido dos Trabalhadores em Santarém. Retorno neste dia em que o blog completa seu primeiro ano em atividade (ainda que sem atualização diária como era minha vontade), contando como aconteceu o primeiro “racha” da famosa “Corrente”, ala majoritária que comandou o partido durante muitos anos e tornou-se referencial de luta e organização no norte do Brasil.
Capítulo V – O primeiro “racha” da Corrente (parte I)

Antes de falar desse “racha”, é interessante lembrar os bastidores da eleição para o Diretório Municipal que “expurgou” a facção dos Sena e Feitosas do poder petista local. Como disse no primeiro capítulo, a Corrente perdeu a primeira eleição para o Diretório Municipal em 1981 e, sem a maioria, perdia todas as votações para o grupo comandado pelo padre Edilberto na direção do partido.
Por esse motivo, a Corrente utilizou de toda a estrutura de sua militância e saiu fundando núcleos de base em todos os bairros da cidade e comunidades do interior. Depois criou o famoso “internúcleos”, que funcionava na verdade como um “Diretório Paralelo” onde se discutia toda a estratégia para retomar a direção do partido com o único propósito de “botar o PT na mão dos trabalhadores e tirar da mão dos pelegos”.
Esse era o clima que reinava nos bastidores. Mas apesar desse poderio, a Corrente não queria correr o risco de perder a votação por qualquer detalhe de última hora. Foi quando encontrou uma solução para acompanhar os passos de nossos adversários: foi convocado um companheiro recém-chegado à Santarém para atuar como “espião infiltrado” da Corrente junto ao grupo liderado pelo padre Edilberto Sena!
O então ex-seminarista Dornélio Silva, hoje consultor de marketing em Belém, retornava à Santarém já casado com uma santarena que conheceu na capital, a hoje socióloga Socorro Brasil (atualmente em Belém, trabalhando também na área de consultoria de marketing com seu ex-marido), com o objetivo de recomeçar sua vida por aqui. Ele tinha um projeto de criação de pintos, já que sua família ainda morava em um terreno na vila de Cucurunã (onde ele nasceu), mas o investimento não deu certo. Filiado ao PT em Belém, ele acabou indo trabalhar na antiga Catequese Rural (hoje, CPT – Comissão Pastoral da Terra) ao lado das conhecidas “cajazeiras”, como eram carinhosamente chamadas Izabel Miranda (atualmente casada com Ranulfo Peloso vivendo em São Paulo e chegou a ser candidata a vice-prefeita de Geraldo Pastana, em 1985), Jandira Pedroso (irmã do empresário Jair Pedroso e que até hoje trabalha no Setor de Pastoral da Diocese) e Maria de Lourdes, a Lurdinha (atualmente é professora e, se não me engano, assessora da Semed). As três trabalhavam com o frei Rainério, religioso que atuou na Transamazônica e “descobriu” os Ganzer).
Por sua amizade com José Maria Piteira (ex-seminarista como ele e atualmente jornalista e assessor de imprensa vinculado ao PSDB em Monte Alegre), que vinha a ser irmão do então secretário-geral do PT, Dinaldo Pedroso (conhecido como “Nal” e que atualmente é meu cunhado, assim como Piteira, morando em Aveiro), Dornélio se dispôs a se aproximar de “Nal” e demonstrar que não tinha nenhuma vinculação com a “Corrente”, participando de reuniões e demonstrando-se solícito para qualquer atividade como forma de mapear o território do inimigo.
Setembro de 1983. Ginásio do antigo Centro Social Urbano (hoje UEPA). As duas facções repetiam o mesmo confronto de dois anos atrás pela direção municipal do partido. Só que desta vez não deu outra: a Corrente elegeu Valdir Ganzer (hoje deputado estadual) como presidente e fêz a grande festa. As informações do “espião” Dornélio haviam sido importantes para a conquista.
A derrota do grupo opositor revelou também o clima de discórdia que imperava em suas hostes. A sina de Edilberto de ser traído por suas crias começava ali. Nal e Mário entraram em choque com o nosso eterno “padre comunista”, como as elites sempre chamaram o irrequieto Edilberto e seguiram outros caminhos. Enquanto Mário foi para o PMDB (seguindo seu então líder regional petista, Durbiratan Barbosa, o “Bira”, primeiro presidente regional do PT, hoje deputado estadual do PSDB), Nal continuou no partido, mas igual “cachorro sem dono”.
Disciplina stalinista - Aqui abro um parentesis para me localizar neste período e mostrar como a disciplina da Corrente era rígida.
Naquele ano eu estava com 20 anos e era um dos mais novos e empolgados membros da Corrente. Atuava em várias frentes, entre elas a poderosa Comissão de Formação Política, formada ainda por Ranulfo Peloso, Izabel Miranda e Valdir Ganzer, que disseminava a ideologia petista nos núcleos de base. Além disso, como todo petista da época, acumulava outras atividades como sindicalista (tinha acabado de retornar de São Bernardo-SP, onde participei da fundação da CUT – Central Única dos Trabalhadores, braço sindical do PT, representando o então reativado Sindicato dos Comerciários), líder da Juventude Petista (grupo que organizava os jovens militantes do PT), coordenador do núcleo do PT no bairro de Santana onde residia na época, membro do Comitê Avelino Ribeiro, entidade criada para resgatar a memória do primeiro sindicalista rural morto nesta região por causa de um conflito de terra (em breve conto um pouco desta história) e membro do MOP – Movimento de Organização Popular, idealizado por Pedro Peloso para fomentar a criação de associações de moradores nos bairros de periferia.
A Corrente havia recebido naquele ano a incumbência do Diretório Regional (o PT nacional já havia intervido no Diretório Regional e Bira Barbosa e seu grupo havia debandado para o PMDB) para reorganizar todos os diretórios da região, criados pelo pessoal do Mário Feitosa. Fui designado junto com outra militante da Transamazônica para acompanhar a convenção municipal em Almeirim e articular a chapa de oposição ao grupo ligado a Mário, e se possível sair de lá com a ata da convenção em mãos.
O problema é que ao viajarmos encontramos no mesmo barco meu futuro cunhado, Nal, com os ditos documentos em sua bolsa. Me aproximei dele e mantive uma relação cordial arquitetando um futuro bote. Lá chegando, Nal que conhecia todo mundo saiu visitando os filiados do PT e eu me ofereci para acompanhá-lo na tentativa de me infiltrar em suas bases. Em minha ingenuidade, acreditei que Nal havia engolido a farsa, já que ele conversava comigo como se não houvesse qualquer animosidade e me levava a todas as casas. Aceitei até sair à noite para tomar uns tragos (imagina eu que não sou de beber). Acabei sendo embriagado e dormi na casa de uma família amiga de Nal. No dia seguinte, de cabeça tonta, percebi que tinha sido enrolado, pois logo se espalhou que eu tinha ficado porre! (Nal, acostumado a beber, devia estar rindo da minha cara...).
Mas na convenção do PT acabou havendo consenso entre os dois grupos e foi votada uma chapa única, só que ao terminar o encontro, Nal voltou a se apossar da ata e a carregou em sua bolsa. Voltamos juntos e eu querendo me vingar, botei na cabeça que roubaria a ata, a qualquer custo daquela bolsa. A companheira que me acompanhava, uma senhora que não me lembro o nome e que era lavradora da Transamazônica, tentava me impedir de cometer outro desatino, mas eu não sossegava. Quando chegamos ao cais de arrimo, ele me deu a bolsa para levar enquanto buscava outra bagagem. Era a chance que eu esperava: tirei os documentos, botei na minha bolsa e fiz de conta que não tinha feito nada. No cais, em frente ao Mercado Modelo, Nal logo abriu sua bolsa e viu que eu havia furtado a bolsa. Passamos a discutir e ele arrancou a minha bolsa para tirar a ata e protagonizamos uma cena patética: dois galalaus disputando uma ata no cais! Ele levou a melhor e por pouco ganhei um catiripapo...
Por conta disso recebi uma reprimenda pública durante uma reunião do Diretório Ampliado (ver o próximo parágrafo) e acabei, logo depois, “designado” para implantar um núcleo do MOP no bairro da Matinha, além de reforçar o núcleo petista que funcionava lá e que estava desativado. Isso implicava em morar na Matinha (numa casa onde hoje ficam os limites com a Nova República, por trás do Motel Delíriu´s), o que na verdade era quase que um “castigo” por eu ter infringido normas básicas de minha conduta petista naquela tarefa.
O julgamento - Passado o clima de festa, os militantes petistas arregaçam as mangas para reorganizar o PT em Santarém dentro da filosofia stalinista da CSLU – Corrente Sindical Lavradores Unidos, capitaneada pela FASE, ONG então comandada em Santarém pelo consultor Antonio Vieira (leia mais detalhes no primeiro capítulo). A estrutura do Internúcleos foi encaixada no Diretório Municipal, que passou a ser chamado de “Diretório Ampliado”, já que além dos 21 membros eleitos tinha um conselho de 50 lideranças que atuavam em diversas comissões de trabalho dando seqüência ao ritmo que imperava no Internúcleos.
Os primeiros dias pós-eleição foram de adaptação da máquina partidária. A Executiva do partido reuniu-se e decidiu as prioridades. Uma delas era estabelecer que o novo secretário-geral deveria se dedicar exclusivamente ao PT e seria remunerado (era o que se chamava no movimento de “militante liberado”, ou seja, aquele que era pago pelas entidades para trabalhar por elas, mas sem vínculo empregatício. Podia ser um dirigente ou não). Ali começou o “racha” da Corrente.
Eleito secretário-geral do PT, o professor Gilmar Pereira (hoje atuando no ensino modular) não gostou da determinação. Na época, ele havia acabado de passar no vestibular da primeira turma regular de pedagogia da UFPa. e era professor contratado do Estado na escola São Felipe na Matinha (esqueci de dizer que Gilmar morava comigo e com Orlando Gamboa, hoje assessor da Semed para o interior). Pedro Peloso, que tinha grande influência nas decisões majoritárias do grupo insistia que ele devia abandonar a Escola e a Universidade para se dedicar ao partido! Era o embate entre um líder pragmático que sempre questionou a academia (até hoje Pedro, apesar de ser um autodidata, nunca tentou sentar num banco de universidade) e um ex-seminarista e intelectual em formação (Gilmar acumula hoje pelo menos três cursos de graduação e especializações).
A Executiva aprovou a proposta de Pedro. Gilmar, resignado, acatou e não renovou seu contrato com a escola. Naqueles dias, eu e Orlando fomos testemunhas do acabrunhamento de Gilmar, que vivia o dilema de ter que abandonar a universidade em nome de uma causa.
Enquanto isso, eu me esforçava para organizar o MOP na Matinha, usando sempre a mesma técnica dos primórdios de nossa organização: o teatro engajado (leia mais no capítulo Capítulo III – A “pré-história” do PT em Santarém/parte 2). Gilmar tentou me fazer ver que os métodos que eu usava eram maniqueístas. Achei que ele estava interferindo em algo que eu havia aprendido a fazer e que naquele momento não podia entender que houvesse outras formas de organizar aquele povo. Fiquei com a pulga atrás da orelha, mas guardei as observações comigo.
Dias depois, numa nova reunião da Executiva houve o confronto: Gilmar resolveu questionar a decisão da Executiva e afirmou que podia até largar a escola, mas não queria abrir mão de seu curso. Argumentou que era importante que houvesse militantes capacitados nas universidades. Mas Pedro considerou tal posicionamento como inaceitável. Os dois se alteraram e no final, Gilmar bateu o pé: não largaria seu curso. Pedro ameaçou de levar o caso ao Diretório Ampliado. Gilmar disse que tudo bem. Estava iniciada a guerra.
O Diretório Ampliado reunia-se periodicamente, se não me engano, de três em três meses. Em abril de 1984 aconteceria a segunda grande reunião e a pauta previa o “julgamento de conduta do companheiro Gilmar”. Logicamente que ninguém sabia de nada antecipadamente. A briga entre Pedro e Gilmar na Executiva havia acontecido um mês antes (se não me falha a memória). No dia do encontro, que sempre se realizava numa chácara em São Braz (onde hoje funciona o Centro de Formação Chico Roque), Pedro abriu o encontro e apresentou o problema ocorrido na Executiva. Explicou com detalhes a posição de Gilmar. Este apresentou sua defesa. Houve uma “votação” e a plenária (por unanimidade) aprovou a decisão da Executiva. Mas Gilmar anunciou que não acataria a decisão. O clima ficou tenso. Houve posicionamentos inflamados sobre “a responsabilidade pela causa” e a “traição aos princípios da luta”. Reforçou-se a tese stalinista do “centralismo democrático” pela qual “um militante tem que acatar o que é decidido pela maioria, sob pena de sofrer punições”. Estavam criadas as condições para o julgamento sumário do companheiro Gilmar.
No intervalo para o almoço, Gilmar, abatido, nos chamou (eu e Orlando) num canto e tomou uma atitude honrada que nunca esquecemos. Ele disse: “não quero que sofram o que estou sofrendo, por isso recomendo que quando forem votar, votem com a maioria. Não ficarei zangado com vocês”. Havia um clima de que seria decidida a primeira expulsão de um companheiro do PT. Confesso que apesar de comovido com o que disse Gilmar, não podia conceber que Pedro estivesse errado e Gilmar não. Orlando parecia atordoado.
Quando abriu-se a votação, a Comissão Executiva do Diretório Ampliado apresentou a acusação e qual seria a punição: Gilmar deveria renunciar ao cargo, mas ficaria sob vigilância de uma comissão de companheiros e seria designado um bairro ou comunidade onde ele deveria morar por um ano com tarefas pré-definidas como forma de contribuir com sua recondução ao caminho certo, caso contrário deveria ser expulso do partido. A proclamação da “sentença” caiu como uma bomba. Nem Gilmar acreditava que Pedro e os outros seriam capazes de tal crueldade! Colocada em votação, a proposta foi aprovada por unanimidade! (confesso, votei nessa ignomínia!!!)
Gilmar foi chamado para se pronunciar e, chorando, disse que aceitar aquilo era humilhante. Anunciou que entregaria o cargo e garantia que se afastaria da estrutura partidária, sem se desfiliar, mas não aceitaria que ninguém comandasse sua vida. Desejava sorte aos companheiros e prometia que não trairia os ideais do PT. Foi um soco no estômago de todos. A gente via no semblante da maioria dos companheiros um quê de arrependimento. Eu e Orlando estávamos atônitos. Gilmar recolheu sua “boroca” e saiu. O clima era tenso. O PT não seria mais o mesmo, para todos nós. O “racha” estava apenas começando...
O resto deste triste episódio conto na segunda parte deste capítulo (espero que em breve...)
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