terça-feira, 15 de maio de 2007

Havia uma garrafa no meio do caminho... (*)

Das experiências que tive em minha vida, uma das que me deixou seqüelas foi um porre homérico que tomei aos 18 anos.
A lembrança me veio à cabeça neste final de semana quando resolvi acabar com uma insônia enchendo a cara (quem me conhece e estiver lendo não vai acreditar). Emborquei meia garrafa e fui pra cama. Não dormi, desmaiei. No dia seguinte acordei péssimo e lembrei do maior porre de minha vida.
Naquela época, o Fluminense realizava o “Carná Setembro”, um carnaval de salão fora de época que levava muita gente para a sua sede. Resolvi ir, mas como encarar um baile carnavalesco sem nenhuma gota de álcool? Naquele dia eu tomei uma decisão: “vou experimentar ficar porre e ver o que acontece”.
Cheguei na mercearia da esquina e como aqueles cowboys do velho oeste, bati com a mão espalmada no balcão abarrotado de moscas e sentenciei para o atônito taberneiro:
- Desce uma meiota pura!
Na verdade eu nem sabia o que era uma meiota. Tinha ouvido falar e resolvi experimentar.
Sem pestanejar, o taberneiro botou uma garrafa de pinga pela metade e saiu de perto. Olhei ao redor e vi biriteiros mais acostumados escondendo um riso entre os dentes não acreditando que aquele fracote (nessa época eu era bem magrinho) seria capaz de tal proeza.
Empurrei o copo de lado, peguei a garrafa e tomei tudo no gut-gut. Paguei e sai me achando o “cara”! Entrei no clube e já fui pulando e cantando “Alala-ôôôôô...”
Daí em diante as lembranças são confusas: rostos deformados (não sei se eram máscaras de carnaval ou efeitos do álcool), serpentinas que pareciam cobras se enroscando em mim e um barulho ensurdecedor que me inebriava ainda mais.
Pulei, gritei, atravessei o salão como se fosse um corredor polonês. Ainda lembro que senti um estremecimento no corpo que me avisava: "vais cair!" Reuni as últimas forças e dei a volta no salão em direção à rua. Acho que fui um folião-relâmpago que entrou na história do clube (talvez ninguém nem tenha notado minha entrada).
Saí e me lembro que a rua tinha umas oito pistas e milhares de carros se amontoavam à frente do clube. Cheguei à conclusão que a meiota já estava fazendo o efeito.
- Vai um táxi patrão?patrão?patrão?patrão...
A oferta do (ou dos?) motora(s) ecoava no meu ouvido, mas meu orgulho embebido de álcool achou que se eu pegasse um táxi naquele momento seria a confirmação de que eu era um frouxo.
- Não, minha é casa é logo ali – apontei rodopiando 360 graus.
Eu até que não morava longe. Minha casa nessa época era por trás da igreja Matriz, mas no estado em que eu estava era o mesmo que ir para o Japão de bicicleta.
Resisti bravamente. Segui em frente com objetivo de chegar em casa. Mas de repente alguém apagou as luzes...
Quando abri os olhos, vi luzes fortes formando um círculo no céu. Um disco-voador? De repente uma mulher toda de branco com uma lanterninha em meus olhos. Estaria sendo abduzido? Outro homem, de branco e com uma barba serena e um sorriso meigo puxa meu braço e me levanta. Seria Deus? Então morri e cheguei ao paraíso?
Me dou conta, finalmente, que estou no hospital do Sesp (hoje, o nosso HSM). Tentam me colocar de pé fora da maca e me conduzem até à porta onde outro homem, carrancudo, me aguarda.
Meu pai me fita com aquele olhar gélido de reprovação. Soube depois que eu havia sido recolhido por um conhecido seu, de uma sarjeta há duas quadras de casa! Me levou ao hospital todo sujo de lama. Acordou meu pai que saiu de casa, agoniado, pensando que eu tinha sido acidentado.
- Tudo bem “seu” Nino, o rapaz só pegou um porre... - disse o médico com um sorriso de gozador.
Bufando como um touro (seu signo), o velho grego me puxa pelos corredores até um táxi. Me joga dentro do carro, onde minha madrasta me aguarda, pega sua velha bicicleta e nos segue. O trajeto entre o hospital e nossa casa é um tormento. Espinafrado com lições de moral dentro do carro, me sinto como se estivesse amarrado ao badalo da igreja. De repente, o motora informa que meu pai caiu da bicicleta lá atrás! Pára o carro, retorna e o coloca no banco ao me lado, com o queixo quebrado e esvaindo-se em sangue! Sou deixado em casa e ele é conduzido ao hospital. Desabo na cama e o badalo foi serenando, mas sonhei que me afogava naquele sangue...
Meu pai ficou sem falar comigo por meses. Trabalhávamos juntos no balcão da lanchonete sem nos comunicar. Foi um castigo maior do que se eu tivesse tomado uma surra dele. Depois disso nunca mais bebi...
Cheguei à conclusão que não fui feito para beber e assumi a condição de “vigilante da sobriedade”, título que até hoje carrego já que sempre que saio com qualquer turma sou o único a não beber uma gota de álcool sequer, e no fim acabo sendo a voz da consciência dos que se embebedam e o conciliador em caso de estranhamentos entre amigos.
Ou o motorista pra levar os bebuns para casa...
--------------------------
(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada terça-feira, 08.05.2007, no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Dores de Anselmo

Recebi a visita em meu blog na semana passada do grande amigo, professor-doutor Anselmo Colares (na foto ao lado com Lílian e Lucas, todos leitores do blog), ex-companheiro de redações, que hoje é vice-reitor do Campus de Guajará-mirim da UNIR (Universidade de Rondônia) e me prestigiou com dois comentários neste humilde espaço:


(...) Por isso, não hesito em lançar mão das pílulas diante do mais leve sintoma de desconforto. Contrariando as recomendações médicas, e mesmo sabendo do mal que isto acarreta, não hesito em combater a dor. (...)
Leia o comentário completo clicando AQUI.
E também o breve comentário sobre a foto ABAIXO.

Barba, cabelo, bigode e... anel no dedo (*)

Sou extremamente avesso a ritos e cerimônias. Fujo deles como o diabo foge da cruz.
Talvez por isso não tenha religião e não queira participar de organizações onde o que o mais importa é a forma e não o conteúdo. Adoro escrever, mas na hora que o formalismo acadêmico ultrapassa os limites da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) me sinto limitado em minha capacidade de criação.
Da mesma forma, participar de um evento com composição de mesa, paletós, gravatas, púlpitos e mestre de cerimônia... só de pensar fico com urticária!
O pânico me leva, às vezes, a cometer gafes como subir no altar da igreja na hora do casamento de um amigo para bater a foto do casal (acreditem, já fiz isso e quase fui linchado pela família do “ex-amigo”...)! Talvez por isso não tenha ido à igreja no dia do batizado da única afilhada que alguém teve a coragem de me entregar e acabei sendo representado por outra pessoa...
Será que lá no fundo do meu ser sou um anarquista trapalhão? Ou será que sofro de uma doença rara que eu chamaria de “paramentofobia” (aversão ou medo da paramentação)? Não importa: no final das contas concluo que sou um bicho do mato quando o assunto é participar de qualquer solenidade formal como casamentos, posses de presidentes ou uma simples graduação acadêmica.
Tenho dito aos colegas do meu curso de Jornalismo, que precisamos pensar numa festa de graduação diferente do que já existe de tradicional e secular... como aquele ridículo chapéu quadrado (o tal do capelo, que vem do grego e quer dizer simplesmente “chapéu”...) ou aquela pavorosa beca e os mesmos discursos de sempre. Por trás de tudo isso, empresas montadas funcionando escancaradamente nos corredores das universidades para vender o serviço completo!
Mas minha voz tem sido um eco no deserto, pois todo mundo sonha com esse momento de registrar em foto e comemorar com a parentada e amigos uma vitória pessoal depois de anos de “suplício”. Assim, como sou voto vencido, sigo a filosofia de Zeca Pagodinho: “Deixa a vida me levar, vida leva eu..”
Enquanto não sai minha formatura (essa sim, um suplício de mais de 20 anos), aqui e ali participo da formatura de outros. Por duas vezes já fui até paraninfo! Imaginam minha saia, ou melhor, beca justa? A primeira vez foi há nove anos, quando da formatura de minha esposa, socióloga. A última na semana passada, da filha mais velha, licenciada em Letras.
Não posso negar que fiquei orgulhoso de ser convidado nas duas vezes, mas ao mesmo tempo entrei em pânico só de me ver participando do cerimonial, ainda no tal do ensaio feito 24 horas antes, como ocorreu na semana passada. E se eu errar o passo? E se eu prender a gravata na cadeira? E qual é o dedo para colocar o tal anel de formatura?
O pior de tudo é que, pela ordem alfabética dos formandos, eu e minha filha teríamos que entrar primeiro no salão com uma fila atrás! E se eu tropeçar no tapete vermelho e causar o efeito dominó, jogando todos os graduandos e paraninfos no chão?
Como conseguir dormir diante de tal estresse?
Como sempre, deixo tudo pra cima da hora: resolvi cortar as longas madeixas e a barba, estilo escova, no dia da festa e acabei me esquecendo! Enquanto em casa todo mundo se emperiquitava, lá estava eu ainda com aquela fisionomia pantagruélica de ogro peludo!
Corro atrás de salões e barbearias pela cidade e nada. Aí me lembro de uma das toscas barbearias que funcionam num distante mercado municipal. Chego lá e vejo o barbeiro fechando as portas e só me resta suplicar de joelhos e acabar sendo atendido. A barbearia maluca do vagabundo Carlitos de Charles Chaplin, no filme “O Grande Ditador”, era uma dádiva diante da pocilga em que me meti.
O barbeiro se mostra atencioso. Sento numa velha cadeira modelo “Ferrante”, enferrujada. A tesoura começa a dançar em minha cabeça, enquanto o barbeiro me conta suas aventuras em Manaus, onde trabalhou num requintado salão. Desconfio, mas tento não ficar tenso, pois se começar a tremer, talvez perca um pedaço de orelha.
O velho relógio de parede parece correr mais que o normal. A tesoura continua dançando em minha cabeça. O barbeiro conversa, mas ao que parece tudo vai bem com minha cabeleira. “Posso modelar as suíças?”, pergunta meu “barbeiro de Sevilha” já com uma navalha nas mãos. Não sei se hipnotizado – pelo velho ventilador de teto cheio de teias de aranha – acabo respondendo “sim”. Acompanho os movimentos do profissional e percebo sua maestria com a navalha. Ele mais parece um espadachim lutando com os pelos de minha face. Acabo me convencendo de que é bom de navalha.
É aí que eu faço a maior besteira do dia: “você pode fazer a minha barba?”, pergunto ao espantado barbeiro que balança a cabeça não demonstrando muita segurança. E ao terminar o cabelo é a vez da barba e do bigode.
O ponteiro grande insiste em perseguir o pequeno no relógio da parede, e meu barbeiro parece encarnar um açougueiro. A navalha que ainda a pouco dava show nas suíças, desliza sobre minha pele sem a mesma maestria. O olhar atônito do barbeiro e o suor em sua testa me revelam que ele já não está fazendo apenas uma simples barba. Talvez seja um aprendiz de cirurgião plástico... A cada deslize, ele solta um “ops!” e recorre a pedaços de papel que cola em meu rosto. Fecho os olhos para não pensar o que está acontecendo. Depois de uma dezena de “ops” e vozes de transeuntes (feirantes e estivadores saindo do trabalho e admirados com espetáculo grotesco), um grito: “oopppppsssss!”. Abro os olhos e vejo o barbeiro agoniado.
Papel já não serve. Uma toalha tenta estancar esguichos de sangue que saem de meus lábios. Saio de minha passividade e resolvo olhar o espelho: me assusto com o Frankenstein ensangüentado que vejo à minha frente... desconsolado o barbeiro vira enfermeiro. Termina a barba e passa aos curativos. Me sinto uma múmia desfigurada.
Chego em casa escondido, mas o estrago não era tão grande quanto parecia quando me olho no espelho. Parto para uma medida radical: jogo álcool na cara e estanco as dezenas de pequenos cortes, inclusive do lábio. Meu lado sado-masoquista parece feliz e os poucos minutos que me separam da solenidade me levam a correr ainda mais. No final o resultado é aprovado: apesar das barbeiragens do “ops”!, arranco alguns “oh!”, de quem vê a transformação.
Depois de “embecado”, filha no braço, táxi de última hora, chego à universidade achando que tudo já acabou, mas o relógio de lá parece maior que o da barbearia.
Tudo corre normalmente. Até o anel do dedo entrou no lugar certo, mas como não poderia deixar de cometer uma gafe, no finalzinho da solenidade o cerimonial chama os novos graduados para apresentá-los à sociedade e o atrevido paraninfo se levanta sozinho, talvez achando que está na sua própria graduação...
Para felicidade geral da platéia, diga ao povo que eu... mico!
------------------------------
(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada em 1º de maio de 2007, no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.