sábado, 3 de maio de 2008

Eu, Tiradentes e uma música presa na garganta (*)

Muita gente não sabe, mas escrevo poesias desde a adolescência. E muitas das poesias surgiam cantaroladas, mas a música acabava perdida no esquecimento ficando o rascunho no papel. Foi assim que fiz da palavra meu ofício, passando de um poeta chinfrim a um jornalista médio e chegando a um escrivão judicial razoável. Também criei composições musicais e até tive algum sucesso em festivais de música, mas uma de minhas frustrações até hoje, foi não ter me tornado um intérprete de algumas dessas composições. Talvez, eu tenha evitado que muita gente viesse a sofrer com meus acordes desafinados...
Em pleno feriadão de Tiradentes, lembrei de como ele me foi útil para driblar a censura da Polícia Federal no final da ditadura militar (1984, general Figueiredo) e tentar um vôo mais alto para me firmar como compositor de MPB. O nome da composição era “Desafio” e fazia uma homenagem a um líder sindical rural de Santarém, o Avelino Ribeiro da Silva, morto dois anos antes numa tocaia, por causa de um conflito de terra. Resolvi mudar o título para “Tiradentes” e troquei a frase “bala de fuzil” por “forca que subiu” e, bingo! Consegui levar a música à final do festival de música de Santarém! Eis a letra:
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Tiradentes (Desafio)
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Quando uma luz brilhar
Foi um filho que partiu
E mãe-terra vai chorar
Pois foi ela quem pariu
Mas do solo vai brotar
Outro homem do Brasil!
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(Refrão)
E haja ódio pra parar
Essa força que surgiu
Da boca de quem gritar
Tanta dor que já sentiu
O peito vai se estampar
Cor de sangue infantil
Que jorra um dia sem parar
E transborda feito rio...
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Quando o coração parar
Foi a forca que subiu
(Foi a bala do fuzil)
Que calou esse penar
Por cantar seu desafio
Mas a chama vai queimar
E acender nosso pavio...
(Refrão)

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Mas o mais interessante dessa minha participação não foi driblar a censura da PF e sai do meu parceiro. Eu já trabalhava como repórter na Rádio Rural e conheci um locutor que apresentava o Jornal do Meio Dia, mas que era meio louco e tinha vontade de brilhar numa banda de rock. Tinha até nome artístico: Dioclau Wonder (!), que vinha a ser um anagrama de Cláudio, mais o "Maravilha" em inglês... Mostrei a composição que havia feito e ele aprovou. Após inscrever e classificar para a primeira fase, me empolguei e disse que queria interpretá-la com ele no dia do festival. Ele, meio que concordou...
Tentamos ensaiar com o conjunto oficial do festival, mas o arranjo que o meu parceiro havia feito era muito louco e ninguém conseguia chegar no tom que ele queria. Como cantava em bandas e conhecia a rapaziada que tocava nas noites, me levou embaixo do braço à casa do Paulo Jofre, o popular Paulinho dos Teclados (talvez ele nem se lembre disso) que à época fazia dupla com o Wilsinho Fona à beira da piscina do então Tropical Hotel (hoje Amazon Park). Cláudio, ou melhor, Dioclau, me apresentou como compositor ao Paulinho e pediu para que ele gravasse um play-back do arranjo que fizera. Paulinho conseguiu, depois de muito custo, entender o estranho arranjo do Dioclau. A idéia dele era que nós cantássemos sobre o play-back em pleno festival!
Com a fita em mãos, passamos a nos encontrar na casa dele para ensaiar. Eu entrava com a segunda voz, esganiçada, que perto da voz dele, quase de tenor, sumia. Ele tinha muita paciência e ia me ensinando como fazer. Fui ganhando coragem e aos poucos já me sentia um Chico Buarque chinfrim.
Chegou o dia da apresentação. Fomos os dois na minha motoneta até à praça São Sebastião, onde um grande público aguardava o surgimento de uma nova estrela da MPB! No caminho, Dioclau me surpreendeu: “Jota, tu não vais cantar...” Freei a moto e disse: “O quê?”. Estávamos a uns 200 metros da praça e dava para ouvir os candidatos sendo chamados, enquanto iniciávamos um intenso debate sobre a imposição do meu parceiro. “Se tu cantares, a gente não passa para a outra fase!”, me dizia ele convicto. Revoltado eu me sentia traído e retrucava: “Porque não me dissestes antes?”. Ficamos brigando e resolvi ter um chilique de artista. “Se eu não cantar, tu também não cantas!”. Afinal eu era o dono da letra e da música, ele só tinha feito o arranjo.
Tínhamos ensaiado e eu achava que estava pronto. “Tua voz não dá!”, me dizia o parceiro. Ao fundo ouvíamos o apresentador dizendo: “E agora, a música Tiradentes, de Jota Ninos e Dioclau Wonder, vamos aplaudir!”. Os aplausos ecoaram, mas o palco estava vazio. Continuávamos discutindo. “Chamamos mais uma vez, Jota Ninos e Dioclau Wonder!”, repetia o apresentador. Desci do meu pedestal e me rendi, ao perceber que acabaríamos sendo desclassificados! “Sobe na moto!”, determinei. Chegamos a tempo e Dioclau deu um show. A música foi classificada, mas um jurado que me conhecia, me chamou a atenção. “Tua música passou, porque não encontramos nada no regulamento sobre play-back, mas vê se evita isso na final!”
Fiz as pazes com o parceiro e nos preparamos para a final. Falei pra ele sobre a recomendação do amigo jurado, pois o júri da final seria gente da capital. Dioclau deu com os ombros e disse que não pretendia cantar com o conjunto, pois eles não acertariam seu arranjo. “Xa’comigo, vou com o play-back do Paulinho e ninguém vai perceber”. Resolvi acreditar...
Mas aí tive uma idéia: “que tal fazermos um mis-en-cène com um enforcamento ao vivo, para despistar os jurados?”. A idéia louca caiu nas graças do parceiro. Mandamos fazer uma túnica branca, um capuz preto e uma corda com nó de forca. No dia da final, lá estava o Dioclau cantando e eu nos bastidores. De repente, no final da música, quando o refrão está sendo repetido, Dioclau sai correndo do palco e voltou vestido com a túnica. Na última estrofe do refrão, entro eu de capuz preto e corda na mão. Boto no pescoço do “Tiradentes”, que se pendura até o chão cantando a última frase “E acender nosso pavio...”.
Aplausos do público. Eu estava realizado. Não cantei, mas dei um toque cênico à apresentação, que era minha especialidade. Mas os jurados não engoliram: “o júri informa que a música Tiradentes foi desclassificada, por usar play-back”, sentenciou o apresentador.
Tiradentes foi enforcado, novamente, em plena praça São Sebastião...
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada em 22.04.2008, no Diário do Tapajós, encarte do Diário do Pará (a fotomontagem mal feita, como sempre, é de minha autoria, com imagem roubada da internet).

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu querido professor Ninos, como eu gostava de charmá-lo, "O polêmico". rs

Sempre dou boas risadas lendo seus artigos, escritos de maneira divertida e inteligente!
Esse da sua incursão como cantor-ator foi o máximo! Rs
Abração,
Cleuma Lima, de Manaus, por e-mail.