sábado, 3 de maio de 2008

O ex-burocrata da ONU que “dialoga” com a Matinta Perêra (*)

Hoje, aqui em minha coluna semanal, publico um dos textos (inédito até agora) que produzi ano passado como estudante do curso de Jornalismo do Iespes, durante a disciplina “Reportagem e Entrevista” da jornalista e professora Socorro Veloso, uma paraense que hoje vive em São Paulo e que deu grande contribuição aos futuros colegas do curso. Trata-se de uma reportagem enquadrada no gênero perfil, que escrevi a partir de uma pessoa do nosso cotidiano tapajônico. Escolhi o engenheiro, cronista e poeta Eymar Franco, que me rendeu um personagem inusitado. Acompanhe o texto:

Pouso Alto. A velha placa de madeira à beira do Km 15 da rodovia BR-163, que liga Santarém (PA) à Cuiabá (MT), na localidade rural de Cipoal (um “quase” bairro de Santarém), indica o nome do sítio de 5,5 hectares logo à frente. Remete ao nome de uma cidade mineira carregada de uma simbologia esotérica que só pode ser explicada pela emblemática figura de seu morador, um burocrata paraense que no anos 1980 – no auge de uma promissora carreira no exterior – trocou as salas de conferências da ONU (Organização das Nações Unidas) mundo afora, por um retorno às suas origens no rio Tapajós.
O pomar de frutas cítricas (hoje são mais de 500 pés de laranjeiras, limoeiros e tangerineiras, ¼ do que restou dos áureos tempos quando chegou a produzir e exportar para a região) de Pouso Alto, exala um perfume convidativo a quem, como eu, senta na varanda para ouvir estórias (ou histórias?) de seus “diálogos” com a lendária figura amazônica da Matinta Perêra e de sua experiência com a eubiose, uma ramificação brasileira da teosofia, doutrina esotérica que defende a existência de uma fonte única e eterna para todo conhecimento e demonstra a identidade essencial entre os grandes mitos das culturas mundiais.
Prestes a completar 86 anos, em 17 de setembro, Eymar Cunha Franco (na foto ao lado, nos tempos de burocrata, numa viagem à Grécia) é agrônomo aposentado, escritor e poeta (três livros já publicados). Conversa com certa dificuldade, apoiado sempre por sua segunda esposa, a ex-comerciária e prima em segundo grau Ana Cecília Tavares Franco, 30 anos mais nova. “Ela é, hoje, minha razão de viver”, me diz Eymar com um olhar lânguido e apaixonado ao se referir à Cecília, que convive com ele há oito anos. Recuperando-se de uma queda sofrida há dois meses em sua casa e que afetou sua coluna – mas não seu humor – ele resume o momento que vive:
- Cheguei numa fase da vida em que me sinto plenamente realizado e, como diz um amigo, quero que o resto se f...”, diz às gargalhadas, acompanhadas de uma forte tosse proveniente do vício de fumar pelo menos um maço de cigarros por dia e de um olhar repreensivo, e ao mesmo tempo cúmplice, da esposa, por proferir um palavrão na frente do jornalista.
Pertencente à família Franco, o menino nascido na fazenda Urucurituba, no município de Aveiro, a 12 horas de barco de Santarém, aos nove anos seguiu para estudar na capital do Estado, iniciando seu vôo alto na careira internacional. Hoje, é um velho sábio que faz da crendice popular sua melhor companheira no Pouso Alto.
Códex Alimentarius - Combinando a erudição adquirida nas viagens a diversos países do mundo com a sabedoria do povo amazônida e suas lendas, Eymar relembra o espírito empreendedor de seu bisavô, Alberto José da Silva Franco, comerciante português que chegou ao Pará em 1836, no meio da revolução popular conhecida como Cabanagem (1835/1840) que combatia a elite lusitana no poder. Em seu livro de memórias “O Tapajós que eu vi” (ICBS, 1998), ele conta que o patriarca dos Franco foi um das centenas de portugueses que saíram de Belém naquele período e refugiaram-se na região. Às margens do rio Tapajós, adquiriu uma área de terra onde até hoje existe uma Casa Grande (foto abaixo), símbolo do Brasil Império. Mas foi para lá que ele pediu para voltar, no momento em que representava o Brasil em importantes grupos de estudo mundiais.
Eymar foi funcionário por mais de 40 anos do Ministério da Agricultura, passando por diversas funções até ser indicado para representar o Brasil no Códex Alimentarius, fórum internacional de normalização de alimentos estabelecido pela FAO e OMS, órgãos das Nações Unidas para a agricultura e saúde, respectivamente. Criado em 1963 com a finalidade de proteger a saúde dos consumidores e assegurar práticas eqüitativas no comércio regional e internacional de alimentos, o Códex obrigou Eymar a participar de incansáveis reuniões nos EUA, Suíça e dezenas de outros países, além das viagens por todos os estados brasileiros para disseminação das normas. Isso levou o velho agrônomo, especializado em controle de produtos vegetais e com faro adquirido na vida da fazenda, a preferir o retorno para assumir a Base Física do Ministério da Agricultura em Fordlândia (Aveiro), sob protestos de sua chefia que o considerava louco.
Na área adquirida pelo magnata americano Henry Ford, para a implantação de um mal sucedido empreendimento de produção de látex nas primeiras décadas do século passado e reassumida pelo governo brasileiro já em decadência, Eymar aliou seu conhecimento e responsabilidade para liderar os ociosos trabalhadores que sequer cuidavam da preservação da Vila Americana, um casario de madeira no meio da floresta com arruamento e sistema de água e luz que muitas cidades amazônicas não tinham. Depois de revitalizar a vila, Eymar decidiu se estabelecer em Santarém.
Diálogos com Matinta – “Sou cético em relação à política e à situação que vejo no país e na Amazônia”, declara Eymar ao explicar sua “mania de conversar com a Matinta Perera”. Ele afirma que os “diálogos” são “uma fuga dessa realidade que nos cerca, através da alegoria amazônica”. A lenda da Matinta Perera é uma das histórias que ouvia dos caboclos do Tapajós desde menino. Nos “diálogos”, muitos deles já publicados em jornais locais, Eymar “discute” alguns problemas da atualidade com a Matinta, personagem da mitologia amazônica representada por uma velha vestida de preto, com os cabelos bastante assanhados caídos no rosto, que costuma sair ao escurecer, de preferência nas noites sem luar, em busca de tabaco e assustando as pessoas através de um forte assobio.
“Dia desses”, fala sério Eymar, “a Matinta andou me dizendo que não gosta do George Bush, pois ele é um perigo para a Amazônia”. Quão sábia é a Matinta, penso eu. Outro dos “diálogos”, que estão sendo reunidos para a produção de um livro de crônicas, faz da Matinta (figura abaixo) sua cúmplice no ato de fumar:

(...)

- Tu precisas escrever uma carta! – Resmungou [a Matinta] puxando o esfiapado casaco preto, para agasalhar melhor a sua corcunda.

- Carta? – perguntei - Para quem?

- Ora, pros teus pariceros.

- Está bem. - concordei - E devo dize o que?

- Diz pra eles acabar com essa bobagem de botar anúncio na televisão, dizendo que fumar é prejudiciar à saúde. Quem não sabe disso,hein?

(...)

- E quer saber mais? Eu e o meu compadre Curupira, fumamos há séculos e estamos aqui para provar que fumar não encurta a vida de ninguém.

E continuou:

- Tu sabes o que mata as pessoa de enfarte?

- Não – Respondi-lhe.

- É tensão, ambição, ganância, medo, gordura e preguiça. Isso que o governo deveria dizer ao povo, ao invés de gastar dinheiro com propaganda contra o fumo.

(...)

O ceticismo em relação a tudo que viu o aproximou da teosofia e o fez se filiar à SBE (Sociedade Brasileira de Eubiose) - da qual hoje já desligado -, criada pelo teósofo brasileiro Henrique José de Souza. “O homem é um ser mental, que pode canalizar suas forças interiores para a prática de atos que modifiquem seu redor”, profetiza. Ele conta que participando desse movimento estudou várias religiões e chegou a conclusões de que todas emergem de um mesmo tronco, mas têm sua base nessa força interior do homem.
Lembra de ter visto um homem com tais poderes quando menino em sua fazenda, e que, sabendo controlá-los, com um simples olhar fazia uma cobra ficar estática! Diz que esse magnetismo pessoal faz com que certos homens se destaquem e sejam, às vezes, confundidos com seres divinos. “Jesus Cristo era um ser especial, mas não acredito no dom divino que lhe foi conferido e propagado pela religião que se criou em torno dele. Ele tinha dons especiais que sabia canalizar para levar uma mensagem de fé e de esperança para seu povo”, afirma.
Nesse contexto, depois de horas de um bate-papo gostoso, porque não acreditar que o velho Eymar encarne a própria Matinta Perera?
No Pouso Alto, um velho sábio, já deitado em sua rede, fuma de olho em seus laranjais e antes que eu me despeça me chama da janela para relembrar, com seu ar carismático e brincalhão: “Quero que o resto se f...”.
Acredito estar vendo a própria Matinta olhando pra mim...
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(*) Artigo inserido em minha coluna Perípatos em 11.04.2008, publicada no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei essa matéria, o sábio Eymar. O livro é muito bom.