Esta é a saudação que escrevi para minha filha, Juliana Pinto, ler durante a solenidade de entrega do Prêmio Internacional Liberdade de Imprensa, no dia 22, em Nova York.
Uma peça teatral reflete muito bem o que é o Brasil. Trata-se de "Eles não Usam Black Tie". Sou um brasileiro comum, que jamais usou um black tie. Mas bem que gostaria de estar neste momento entre os senhores envergando um traje a rigor. Ele nos torna mais agradáveis, é confortável, realça ou superdimensiona algumas das nossas qualidades. É nossa vitrine glamourosa.
Nesta festa, porém, o traje é, sobretudo, um símbolo. É um traço de união entre o mundo rico e o mundo pobre. Os cidadãos afortunados que aqui se encontram concederam, referendaram ou estão a aplaudir quatro cidadãos que têm empenhado seu engenho & arte para diminuir - se não acabar - com a distância entre ricos e pobres. Têm colaborado para construir uma ponte entre os poucos que têm muito e os muitos que nada têm. Não apenas pensando em termos materiais. Raciocinando, também, com valores morais e éticos, lidando com conceitos como dignidade, liberdade, vontade, opção, alternativa.
Sabemos nós, honrados pela escolha do CPJ, que os senhores são uma boa platéia, uma plenária bem vestida e bem alimentada de ouvidos sensíveis, de olhos perspicazes, de vontades dignas, de gente decente, que não se envergonha de seu black tie, muito pelo contrário, usa-o com aprumo e elegância. Mas querendo contribuir para que todos possam vestir-se bem, comer bem, pensar bem, fazer o bem.
Sabemos nós, honrados pela escolha do CPJ, que os senhores são uma boa platéia, uma plenária bem vestida e bem alimentada de ouvidos sensíveis, de olhos perspicazes, de vontades dignas, de gente decente, que não se envergonha de seu black tie, muito pelo contrário, usa-o com aprumo e elegância. Mas querendo contribuir para que todos possam vestir-se bem, comer bem, pensar bem, fazer o bem.
Venho de uma região que abriga 18% da água superficial doce desse nosso maltratado planeta e um terço das florestas tropicais que nele ainda restam. Nessas matas há a maior fonte de diversidade de vida, um volume de informações genéticas que ainda somos incapazes de dimensionar - e mais incapazes ainda de preservar para o necessário momento de estudo, revelação, controle e respeito. Apesar dessas duas grandezas básicas, em escala planetária, temos nos notabilizado como predadores justamente dessas que são nossas maiores riquezas.
Nenhum povo destruiu mais floresta, em tão curto prazo, como os colonizadores contemporâneos da Amazônia fizeram em apenas meio século. O desmatamento já consumado na Amazônia equivale a uma área duas vezes e meia maior do que o Estado de São Paulo, que concentra em seu território um terço da riqueza brasileira, ou 700 mil quilômetros quadrados. Na década de 60, ela representava menos de 1% da Amazônia. Hoje, está chegando a 20%. É uma devastação terrível e um desperdício criminoso de recursos naturais, muitos dos quais nem chegaram a ser inventariados.
Não se lance culpa execrável sobre os colonizadores da Amazônia. Foi assim em toda história da humanidade. Depois de nos tornarmos Homo Sapiens, nos restringimos a ser Homo Agrícola no trato com a natureza. Nunca nos consolidamos como Homo Floresta. A história da expansão física da sociedade humana é a história da devastação de suas florestas. Nossa cultura é a do desmatamento.
Agora, porém, temos a oportunidade única de usar a experiência da destruição e os conhecimentos já acumulados no trato com a natureza para escrevermos na Amazônia uma história inédita, centrada na manutenção da floresta e não na sua extirpação. É a última oportunidade que a humanidade tem de fundar o Homo Floresta.
Esse "capítulo do Gênesis" que o criador não escreveu, transferindo-o para a responsabilidade de sua criatura, ainda é possível. Mas a cada dia essa possibilidade se distancia do plano da realidade. Se ela for exeqüível, só o será com a participação dos homens de boa vontade do mundo inteiro. O capital já descobriu que a Amazônia é um lugar excelente para se reproduzir e se multiplicar. A Amazônia já faz parte do circuito internacional do capital, fornecendo produtos como os minérios, a madeira, algumas outras matérias primas e, através de biombos, informações genéticas valiosíssimas. É hora de entrar em ação o circuito do saber, da informação, da solidariedade do conhecimento.
Com tanta água, a Amazônia não sabe manejá-la. Vivemos agora o impacto de uma seca como nunca se imaginou que fosse acontecer. O abastecimento de água potável é um grande problema nas cidades. No campo, já há regiões onde a água só pode ser captada em grandes profundidades. O equilíbrio ecológico, que permite à floresta viver dela mesma, foi rompido e está ameaçado de destruição antes mesmo que tenhamos podido compreendê-lo.
Só compreenderemos tudo isso, tornando-nos parceiros verdadeiramente inteligentes dos caprichos que a natureza aplicou na Amazônia, se contarmos com a solidariedade dos povos que mais se adiantaram na produção científica e tecnológica, num projeto verdadeiramente humanista, generosamente partilhado. Só assim a Amazônia escapará ao destino que o bwana lhe traçou, condenando-a a ser uma vil repetição do que aconteceu na África e na Ásia.
Neste dia em que não pude vestir meu black tie e vir a esta bonita festa, na capital do mundo, atado que me encontro nas teias sórdidas montadas pelos que querem sufocar meu jornalismo crítico, comprometido em transformar a verdade na arma de libertação de que falava o profeta bíblico, mando-lhes o apelo das selvas, à maneira de Jack London, o grande jornalista de outras fronteiras no mundo: estendam suas pontes a este lado do mundo. Embarquem no desafio de construir uma civilização e uma cultura da floresta nesse Éden que o grande criador delegou à nossa criação - humana, demasiadamente humana. Que os ensaios de garranchos sejam substituídos por uma página bem escrita, na qual a inteligência crie um mundo novo, melhor e mais justo, como nós todos desejamos. Com black tie ou em mangas de camisa, não faz diferença. Muito obrigado.
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(*) Lúcio Flávio Pinto, jornalista. Artigo republicado neste blog sob permissão do jornalista Miguel Oliveira, diretor do jornal O Estado do Tapajós, onde foi originariamente publicado em 29/11/2005.
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