segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Exercitando meu sentimento “provincimetropolitano” (*)

As luzes que vejo agora pela janela já não são na mesma quantidade das que deixei uma hora atrás. A escuridão da noite que a pequena janela também me proporciona e o cansaço de outras noites mal dormidas, não conseguem arrefecer o êxtase da chegada. A pulsação está mais forte, pois sinto que cheguei em casa e nem o velho medo de viajar em avião me tira esta certeza. O último solavanco da aterrissagem encerra mais um calvário aéreo que sou obrigado a fazer de tempos em tempos.
Carregar uma verdadeira mala sem alça me faz lembrar que fui obrigado a isso por trazer de volta todo o excesso de peso de 15 dias de férias na cidade em que nasci, mas ao arrastar a dita mala pela pista do aeroporto avisto o acanhado terminal de passageiros da cidade em que renasci. Sei que agora realmente estou chegando em casa e naquele lugar começo a exercitar meu eterno sentimento “provincimetropolitano”, de quem divide o coração e a mente por duas realidades distintas entre as cidades que são meu principal corredor de vida nesta imensa Amazônia.
Há menos de uma hora saí de um aeroporto suntuoso, internacional, no qual não piso na pista por onde taxiam os aviões, e sim por corredores de modernidade que não sei se um dia terei o prazer de ver no aeroporto que acabo de chegar. Mas as distâncias entre a Belém/metrópole e a Santarém/província, são maiores que uma hora de vôo.
A balbúrdia no saguão de desembarque, a pequena esteira rolante, os carrinhos que se entrelaçam e a saída tumultuada onde os mesmos taxistas de sempre disputam o exíguo espaço com parentes afoitos e o atabalhoado vigilante que sequer confere as etiquetas das malas, além dos carros saindo em disparada na pista “cariada” que separam o aeroporto da cidade em 15 minutos de martírio, não me deixam nenhuma dúvida: voltei à minha linda província!
O sentimento “provincimetropolitano” continua a fluir enquanto trafego naquela avenida que poderia espantar qualquer turista ao descer do aeroporto. Afinal, se a primeira impressão é a que fica o que dirá o desavisado turista que enfrenta a primeira das maltratadas vias desta cidade?
Mas no meu caso, o sentimento é tão confuso quanta a mistura das palavras contidas no neologismo que criei para descrevê-lo. Santarém, acredito, convive com essa mesma realidade. Afinal, como explicar essa sensação de vivermos numa cidade de eternas esperanças em se tornar uma metrópole, capital de um estado que não sai do papel (a não ser em época de campanha eleitoral), mas que parece não conseguir se desvencilhar de sua condição de província? E até que ponto isto é bom ou é mau?
A escuridão da noite, aliada à falta de iluminação pública, não me deixa ver pela janela do carro as margens da avenida Fernando Guilhon. Mas conheço a imagem de cor e sei que os terrenos com mato cercado e as áreas baldias com jeito de empreendimentos falidos, aliados à extensa fileira de casebres mal-cuidados não são o melhor cartão de visitas de quem chega. Pior ainda quando nos defrontamos com o monstrengo inacabado que chamam de viaduto...
Me vêm à mente imagens de uma cidade que se não é o primor de organização, tem pelo menos uma infra-estrutura urbana um pouco mais civilizada quando se sai do aeroporto. Pelo menos até onde a vista alcança, pois Val-de-cans também tem seus dias de Santarenzinho...
Lá também tem viaduto e túnel inacabado, Mas o asfalto até que trafega na maioria das ruas e os buracos ainda não são tão evidentes como aqui, afinal, cada prefeito que passa faz um recapeamento que consegue tirar essa impressão. Aqui, só as famigeradas operações tapa-buraco que transformam nossas ruas em tapetes de “ocarub”, como dizia um professor no meu curso de letras da UFPa. ao interpretar de forma concretista o anagrama que o buraco tapado representa, ou seja, um buraco ao contrário... Ponto para a metrópole.
Enquanto viajo em direção à minha casa, tento fazer uma viagem mental para comparar a metrópole e a província. As diferenças nem são colossais, mas visivelmente se sobrepõe uma sobre as outras. Enquanto a metrópole é feita de muralhas de concreto que brotam nos bairros, onde cada vez mais gente vê a cidade do alto, aqui não mais que três espigões reinam imponentes em pontos eqüidistantes da cidade. Ponto para a província.
A vida noturna em Belém é bem mais rica, com bares, restaurantes e cinemas, e também mais perigosa. Aqui, a noite cultural pode se resumir a uma fita de DVD (cinema já não há, lembram?) em casa ou os mesmos bares e restaurantes de sempre. Lá espetáculos teatrais, shows musicais. Aqui, quando muito, o salvado Pixinguinha num auditório cheio de goteiras (enquanto divago dentro do carro, ouço a informação de que a Banda Calypso está na cidade... Alívio, me sinto mais próximo da metrópole...). Ponto para Belém.
Apesar da falta de opções culturais, Santarém tem ainda o privilégio de uma enorme janela para o rio, vista da nossa bela orla fluvial, coisa que Belém talvez nunca consiga ter, a não ser de forma envidraçada, na estação das Docas. Ponto para Santarém.
Quanto á área comercial, pode-se dizer que o marasmo e a desordem da Lameira Bittencourt (Santarém) não deixa a desejar ao que ocorre na João Alfredo (Belém). A diferença está nos shoppings-centers, verdadeiros templos de consumo, onde reina a assepsia e a segurança. Ilhas de conforto para quem busca gastar seus míseros trocados. Ponto para a metrópole.
Lembrei que no aeroporto de Belém, assisti a mais uma reportagem do Fantástico sobre a nossa redentora Alter-do-Chão, um paraíso que apesar da falta de infra-estrutura turística e que tenta criar uma atração cultural copiada de Parintins como nova fonte de renda, ainda é mais belo que Salinas e Mosqueiro juntas. Nesse caso pode haver controvérsias, se a preferência for água de mar em vez de água do rio. Empate.
Depois de deixarmos outro passageiro em sua residência, passamos pelo nosso principal corredor de tráfego no centro da cidade, a famosa Ruy Barbosa, agora vazia e trafegável. Me teletransporto à avenida presidente Vargas, em Belém, que tantas vezes andei desde criança e que nestes 15 dias tantas vezes voltei a percorrer, de carro, de ônibus ou pior, a pé. É a visão do inferno! O gargalo que desemboca na praça da república é pior cartão postal da cidade, com carros e pedestres disputando cada espaço, numa alucinante confusão que parece não ter fim. Ponto para Santarém?
Relembro que esse mesmo caos já começa a se reproduzir na Ruy Barbosa, em escala menor é claro, mas é aí que reside o eterno dilema “provincimetroplitano”: até que ponto os avanços do progresso podem ser sinal de felicidade? Como imaginar que uma cidade como Santarém, tão bela quanto foi a Belém do passado, vai sofrer com as conseqüências de uma explosão demográfica anunciada, estrangulando-se por vias sem acesso, sem iluminação, com buracos e com futuros assaltos em cada esquina? Este pode ser o ônus da prosperidade econômica, mas a visão do caos de uma cidade ainda mais mal planejada que Belém, me assusta. O carro chega, entro em casa e meus seis cachorros me recebem com o rabo abanando. O que importa mesmo, é que finalmente cheguei em casa...
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada em 01.08.2006 no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará

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