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domingo, 15 de julho de 2007

Três anos sem Haroldo Maranhão

Recebi ontem do amigo Elias Ribeiro Pinto, jornalista e cronista do Diário do Pará, um presente de aniversário: o seu artigo que seria publicado hoje na edição dominical do jornal, relembrando a importância do escritor paraense Haroldo Maranhão (foto), morto há três anos. Infelizmente, por problemas com a internet, só pude postar o artigo agora. Quem não leu o artigo na edição impressa ou na versão on-line do Diário do Pará, pode lê-la aqui no blog:



Autor de livros como Memorial do Fim: A Morte de Machado de Assis, Cabelos no Coração, Rio de Raivas, Os Anões e As Peles Frias, que não podem faltar numa biblioteca essencial de literatura, principalmente entre leitores paraenses, exatamente num dia 15 de julho, há três anos, em 2004, morria o escritor Haroldo Maranhão, poucas semanas antes de completar 77 anos. Jornalista, escritor e advogado, Haroldo Maranhão nasceu em Belém, no dia 7 de agosto de 1927, filho do jornalista João Maranhão e de Carmem Lima Maranhão. Aos 13 anos já atuava como repórter policial no jornal A Folha do Norte, de propriedade de seu avô, Paulo Maranhão, onde chegou a ser redator-chefe. Ainda na Folha, fundou e dirigiu, de 1946 a 1951, o Suplemento Literário do jornal, “difundindo tudo o que de melhor e mais novo se fazia na literatura e na arte do país e do estrangeiro”, golpeando “o isolamento que ilhava a produção local”, registraria, décadas depois, Benedito Nunes. Em seguida, os dois amigos, ao lado de Mário Faustino, publicaram a revista Norte – que sobreviveu por três heróicos números, de 1951 a 1952.

Nos anos 50, Haroldo abriu as portas da Livraria Dom Quixote, na galeria do Palácio do Rádio, ponto de encontro de intelectuais belenenses. Como advogado, tornou-se procurador da Caixa Econômica Federal no Rio de Janeiro (RJ), cidade onde viveu durante 40 anos. Haroldo faleceu em Piabetá (RJ) e foi enterrado na cidade do Rio de Janeiro. No texto a seguir, para revivermos e compartilharmos lembranças deste grande mestre das letras, professor de dignidade e de inabalável indignação (onde esta coubesse, e nunca lhe faltaram motivos para exercê-la), relembro alguns encontros que tive com o autor, desde o inaugural até o último.


Eu, Haroldo Maranhão e seu Rocinante Opala

Ainda estávamos na era do fax (que veio um pouco depois da era do jazz e da era da Tuna Luso de China, Waltinho e Fefeu) quando tive meu primeiro contato com Haroldo Maranhão. Foi através dele, do fax, que fiz aquela famosa entrevista com o escritor, o seu mais importante depoimento a um jornal, não por arte do entrevistador, mas simplesmente porque o entrevistado estava disposto a falar, ou melhor, escrever. E muito.

Quando Haroldo morreu, em 15 de julho de 2004, republiquei boa parte da entrevista aqui no DIÁRIO. Ela foi publicada, originalmente, em 23 de setembro de 1990, em A Província do Pará, sob o título “O Pará não morreu. Viva o Acará!”. O Acará aludia ao personagem principal de Cabelos no Coração, livro que Haroldo lançava então, naquele distante ano de 1990. Filippe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, ou Filippe Patroni, ou Doutor Patroni, este o nome do personagem,
nascido no Acará, tal qual Batista Campos e Júlio Cezar Ribeiro de Souza. Muita cabeça para pouco município, dizia o Haroldo. “Uma coisa é ser acaraense, outra é ser paraense. Minha maior ambição é vir a ser acaraense. Benedito Nunes não se deu conta mas é acaraense, dos puros. Ignoro o que acontece por lá. Devem ser as
águas, a floresta, os igarapés, alguma coisa que circula no ar. Não sei. Pelo sim, pelo não, aconselho as grávidas a irem parir no Acará.” Não preciso dizer que o atual Acará não corresponde à geografia heróica e sentimental desse Acará prodigioso, patroniano, haroldiano.

Por falar em Benedito Nunes, em setembro daquele ano de 2004 assisti a uma palestra do mestre, no Instituto de Artes do Pará. Na mesa, além de Nunes, os poetas Age de Carvalho e Max Martins. O encontro homenageava Haroldo Maranhão. O que mais me tocou, ao final, foi quando um senhor se aproximou de mim, confirmou que eu era eu mesmo, e me agradeceu a reedição da entrevista, quando da morte do autor de Rio de Raivas. Graças a ela, disse-me, começou a ler Cabelos no Coração, livro, aliás, que carregava na ocasião, com a identificação na lombada de volume emprestado de biblioteca pública. Foi, naquela noite, a homenagem mais representativa ao grande escritor.

Mas voltemos, como eu dizia no primeiro parágrafo, ao contato inaugural com o autor de O Tetraneto Del-Rei. Eu não tinha fax. Quem transmitiu minhas perguntas ao Haroldo, residente no Rio de Janeiro, foi o superintendente da Província, Roberto Jares Martins, que também já nos deixou. Um dia depois de enviadas as perguntas, Jares recebeu as respostas, leu e me chamou. Li e logo percebi que era uma entrevista histórica. Haroldo mexia com a pasmaceira paraoara. Sobravam cipoadas até para o indolente entrevistador.

Nosso primeiro contato pessoal foi logo na semana seguinte a essa entrevista, quando o autor veio a Belém para lançar o dito Cabelos no Coração. Conhecemo-nos exatamente na noite de autógrafos, no Museu da Universidade Federal do Pará, na avenida Governador José Malcher.

Tornamos a nos ver um ano depois, em julho de 1991, no Rio de Janeiro, eu indo para a minha primeira Bienal do Livro. Aliás, pessoalmente, tive poucos mas luminosos, privilegiados encontros com Haroldo Maranhão. Como foi o caso desse segundo encontro, no Rio de Janeiro. Hospedei-me num hotel na avenida Nossa Senhora de Copacabana. E acabo de lembrar do nome, condoreiro, do hotel: Castro Alves.

Cheguei na madrugada seguinte à morte do cronista Paulo Mendes Campos. O dia, por isso, amanheceu-me melancólico. Mas logo me pus no rumo da Praia do Flamengo, onde ficava o apartamento do Haroldo, que me aguardava.

Recebeu-me na sala forrada de livros, muitos deles preciosos, raridades em matéria de dicionários, primeiras edições de Machado de Assis, de autores brasileiros modernistas, diversos com autógrafos para o próprio Haroldo. Este acervo, hoje, está na Sala Haroldo Maranhão, no Centur. Conversamos, fui espiar à janela, que dava para os jardins do Palácio do Catete (atual Museu da República), onde Getúlio Vargas se suicidou.

A Bienal era no Riocentro, que, apesar do nome, é longe pra burro, no Recreio dos Bandeirantes, bairro vizinho de Jacarepaguá, onde, cantava-se naquela música, acabavam seus dias os que não encontravam sua cara-metade. O escritor sossegou-me: ele me levaria até lá. Mas o meu sossego inquietou-se quando me confidenciou que há meses, anos, sei lá, não tirava o carro da garagem do prédio. No máximo, aquecia-o.

Descemos até a garagem. Na vaga reservada a seu apartamento, havia algo que lembrava um Opala. Conseguimos, depois de alguns minutos esquentando a máquina, desembaraçarmo-nos do labirinto subterrâneo, e lançamo-nos na selva selvagem do trânsito carioca. Foi a primeira e única vez que conheci o Haroldo Maranhão motorista. Como vocês podem ver, sobrevivi para contar a história.

Chegando ao Riocentro, circulamos por um par de horas na Bienal até o Haroldo dizer que precisava retornar. Fiquei até o final da tarde. De noitinha, na saída, a temperatura caiu tão repentinamente, baixou uma neblina tão densa, que o fato virou notícia no Jornal Nacional. Envolvido por aquela enternecida solidão que nos acomete quando estamos distantes de tudo e de todos, imerso naquele denso e atípico nevoeiro carioca, envolvido de mim, em mim, me aproximei, enquanto aguardava o transporte, de um trailer e pedi um conhaque vagabundo qualquer, mas um dos melhores e mais aconchegantes que tomei até hoje.

Tivemos outros encontros naquela ocasião. Acho que ainda a bordo do Opala – talvez herdeiro daquele Rocinante manchego, montaria de D. Quixote – prodigalizamos novas incursões, espécie de turismo literário. Ali, apontava-me, era a casa do Bruxo do Cosme Velho, o Machado de Assis que, naquele ano de 1991, era personagem de um novo romance do escritor, o último que Haroldo lançaria, Memorial do Fim: A Morte de Machado de Assis, reeditado em 2004 pela Editora Planeta. Mais adiante, indicou-me que fulano, ou fulana, já não lembro quem, atirara-se de um prédio.

Nas pistas da Praia do Flamengo que corriam diante de seu edifício, morreram atropelados, disse-me, o poeta português António Botto, o jornalista e escritor Brito Broca e um terceiro cujo nome também não lembro (às vezes, o nome me surge, estampa-se, para tornar a escapulir, como agora). É possível que um ou outro tivesse tomado umas e outras a mais e, estonteados, ousaram cruzar aquelas pistas varejadas de carros em voraz velocidade.

Numa dessas incertas incursões terminamos, eu e Haroldo, num restaurante do Baixo Leblon onde jantamos uma deliciosa paella, acompanhada de chopes “na pressão’, como ele pedia aos garçons. Saímos meio de pileque. Percorre-me um calafrio agora ao imaginar que o Rocinante Opala talvez nos aguardasse defronte ao restaurante.

Também estive com o escritor num daqueles tradicionais restaurantes do antigo centro carioca. Quando fui em 2003 ao Rio (e falei com o Haroldo apenas por telefone, ele morando em Piabetá, distrito de Magé, um município não muito distante do Rio, e como lamento não ter ido, naquela ocasião, ao seu encontro), em mais uma Bienal, tentei localizar esse restaurante, enquanto caminhava pelas ruelas centrais. Nada. Só atinei mesmo com a Casa Lidador, de importados, onde chegamos a entrar para sondar alguns queijos ou vinhos.

Acho que não tornamos a nos encontrar no Rio de Janeiro. Os demais contatos pessoais foram por aqui, em Belém. Por exemplo, em 2001, num depoimento do escritor à TV Cultura, gravado na casa de Benedito Nunes. Haroldo Maranhão passou quatro dias em Belém. Participou, naquele momento, da entrega oficial de sua biblioteca, então adquirida por R$ 150 mil pela Companhia Vale do Rio Doce e repassada à Biblioteca Pública Arthur Vianna.

Combinei uma entrevista com o Haroldo. O acertado era que o repórter passaria à noite, no hotel, para ouvir o escritor. Mas foi este que, imprevistamente, veio à toca do entrevistador. Sozinho em casa, tive que interromper o banho para atender quem batia. Era o próprio Haroldo Maranhão. Com o cabelo ainda ensaboado, o surpreso e improvisado anfitrião acomodou o ilustre visitante, da melhor forma possível, em meio à bagunça doméstica. Foi só o tempo de tirar o xampu da cabeça, arrepanhar umas roupas, ligar o gravador e iniciar a conversa, de pronto, pois as perguntas ainda seriam organizadas para a entrevista combinada, que se realizaria no hotel onde Haroldo estava hospedado.

Com uma agenda carregada, o autor de A Estranha Xícara chegou à minha casa extenuado. Era véspera do dia de seu regresso e dia seguinte ao longo depoimento na casa de Benedito Nunes, do qual também participei. Mas, disse-me, não poderia faltar ao compromisso assumido, ainda que para conceder ligeira entrevista. Foi o que ocorreu. Durante a conversa, por duas ou três vezes, nas breves interrupções para mudar de lado a fita do gravador, Haroldo queixava-se do cansaço, e tentava convencer o entrevistador de que já bastava (na transcrição, deixo registradas, em parênteses, essas intervenções, para situar o leitor do andamento da conversa, amena, ainda que toldada pelo compreensível esgotamento físico do entrevistado). Mas o entrevistador, insensível, insistia um pouco mais. As últimas perguntas foram feitas com Haroldo, já em pé, se encaminhando para a saída. Na pele de jornalista, ao final da conversa monitorada pelo gravador, mal tive tempo de abraçá-lo e de lhe desejar boa viagem. Eu não sabia, mas aquele seria o último encontro em que estivemos ao alcance de um abraço. Depois, longas conversas ao telefone, e períodos ainda mais longos sem nenhuma conversa. Até que me alcançou não mais seu abraço de amigo fraterno, mas a notícia de sua morte, naquele 15 de julho de 2004.

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