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sexta-feira, 16 de setembro de 2005

Dossiê PT – estórias que não gostaria de contar

Capítulo III – A “pré-história” do PT em Santarém (parte 2)

Na primeira parte deste capítulo do meu “Dossiê PT”, falava sobre a utilização do teatro engajado como ferramenta para a formação de um núcleo urbano de resistência vinculado à “Corrente Sindical Lavradores Unidos”, grupo organizado por trabalhadores rurais com apoio de padres da Teologia da Libertação e técnicos da FASE (Federação dos Órgãos de Assistência Educacional e Social). (Leia AQUI o capítulo anterior)

Esse foi na verdade o espaço em que comecei a me formar um militante da causa. Os irmãos Ranulfo e Pedro Peloso foram os responsáveis pela formação do grupo, que se reuniria semanalmente na casa dos Peloso com a motivação de preparar o que se chamava de “sócio-drama”, ou seja, uma pequena historieta dramatizada, escrita com primor pelo grande guru Antonio Vieira, com apoio dos irmãos Peloso, e que levaria uma mensagem ideológica clara para populações de periferia: para vencer seria preciso a organização coletiva e dispensar qualquer aproximação dos “patrões” (ou “burguesia’).

O grupo era formado essencialmente por jovens de classe média, em sua maioria irmãos, amigos e vizinhos dos Peloso, que moravam à época numa casa da Avenida São Sebastião, quase em frente ao Colégio Ezeriel Mônico de Matos. Ali surgiria o laboratório para as futuras lideranças políticas, que em grande parte ainda lideram o movimento petista em Santarém.

Éramos 12 jovens (coincidência com os 12 apóstolos de Cristo?). Além de Pedro, participavam do grupo: seus irmãos Milton, Rita e Socorro Peloso e um sobrinho chamado Manuel (conhecido por “Bertué”), dois colegas de Pedro, Onildo e Maurício, que trabalhavam no Mercado Modelo na venda de garapa – atividade exercida por muito tempo pelos Peloso, naquele local – (de Onildo não tive mais notícia e quanto a Maurício, sempre cruzo com ele no Hemopa, onde é funcionário); participavam também as então namoradas de Milton e Pedro, respectivamente, Tânia (nunca mais soube dela) e Raimundinha (que casou e separou de Pedro, e hoje é esposa do deputado petista Aírton Faleiro); e mais duas amigas, Albertina, uma vizinha dos Peloso (que nunca mais vi) e Delza, uma professora que até pouco tempo dava aulas na escola Janelinha do Saber.

Eu fui o último a ser integrado ao grupo. Na verdade só entrei porque um dos membros havia desistido e a peça em ato único que se ensaiava já tinha data para a primeira apresentação. Mas para eu ser convidado, houve todo um processo de seleção que eu nem percebi. Outras pessoas que foram sondadas não preencheram os requisitos e acabei sendo indicado (pelo menos foi o que soube muito tempo depois).

Corria o ano de 1979. Há um ano eu morava em Santarém e tinha acabado de completar 16 anos. Trabalhava com meu pai no Nino-lanche, uma lanchonete que funcionou inicialmente na Travessa dos Mártires, bem em frente às Boas Lojas (na época era a Paralar, o grupo se consolidou anos mais tarde). Fui vizinho do Foto Ideal, loja do peruano Alfonso Jimenez (o “Poderoso”). Mas havia uma outra loja de fotografia no canto da Travessa dos Mártires com a Floriano Peixoto (onde hoje existe uma loja de produtos importados), a filial do Foto Menezes. Ali trabalhava a então comerciária Raimunda Nonata Monteiro, até hoje conhecida carinhosamente como Raimundinha. Atualmente é jornalista e professora da Ufra. Segundo me consta, ela também buscava encontrar alguém com o perfil que se encaixasse no que o grupo precisava e eu era seu alvo.

Raimundinha era minha freguesa mais assídua na lanchonete. Com seu enorme sorriso, sempre ia lá nos intervalos de seu expediente e começava a puxar conversa comigo. Fazia perguntas e eu respondia. Eu fazia palhaçadas, mostrava um talento pra contar piadas (que, modéstia parte, sempre tive), falava de minhas preferências musicais (naquele tempo não conhecia Chico Buarque e ainda vivia uma fase meio brega). Foi quando falei que gostava de teatro e que havia feito várias peças em Belém, quando estudava no colégio anglicano Jonh F. Kennedy. Raimundinha passou a conversar cada vez mais comigo buscando outras informações sobre minha experiência teatral. Aos poucos foi me sondando e falava do grupo que participava. Eu tinha ojeriza a grupos de jovens católicos, mas ela me garantiu que a proposta do seu grupo era só fazer teatro. Não ficava bem claro para mim as idéias do grupo, mas fui me fascinando por suas narrativas e aguardava ansioso que ela me convidasse a conhecer o grupo. E parece que ela sentia isso também, mas talvez o método de abordagem ainda não estivesse completo. Até que um dia o convite foi feito.

Naquela semana de julho fui ao endereço na São Sebastião. As reuniões aconteciam no quintal da casa dos Peloso, embaixo de uma barraca coberta. Fui apresentado ao grupo e me senti muito bem. Cheguei calado, mas eles foram me descontraindo. Milton era sempre o animador. Com seu inseparável violão, tocava músicas de Chico, Caetano e outras da MPB. Mas a música de encerramento das reuniões do grupo era “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. Foi a primeira vez que ouvi aquela canção e fiquei fascinado. Eles cantavam como se fosse um hino e eu me senti envergonhado por nunca ter ouvido tal música (o mais “ revolucionário” que eu conhecia e Gitá, de Raul Seixas...). Eu era um alienado total naquele tempo.

Resumindo a história, depois de algum tempo me enturmei e aceitei participar do grupo e da peça. Meu empenho logo me levou à condição de secretário. Fiquei responsável pela lavratura das atas. O meu papel encaixava como uma luva para mim: eu faria um jovem filho de um empresário que vivia o dilema de ser filho adotivo e cuja origem era de sua família era pobre. Assim me identificava com os trabalhadores de meu pai, chegando a participar de assembléias de sindicato. Meu “pai” era o Milton e minha “mãe” a Tânia. A idéia era mostrar o conflito ideológico que passava na cabeça de meu personagem, que no ápice da peça tinha que decidir de que lado ficaria. O final era contundente. O filho é flagrado pela polícia repressiva numa batida ao sindicato. Os sindicalistas são presos pela repressão e o pai chega e encosta o filho na parede com um discurso sobre as vantagens do capitalismo. O filho, acaba correndo atrás do pai e abandona os trabalhadores que acreditaram nele, à própria sorte. A frase que é dita no meio da peça ecoa nos meu ouvidos até hoje: “Água não se mistura com óleo!”. Esse é o cerne ideológico incutido por Vieira (o guru da Fase) naquele sócio-drama.

A peça durava algo em torno de 40 minutos. Foi ensaiada exaustivamente e seria apresentada em três bairros: Uruará (onde hoje é o São José Operário), Interventoria e Matinha. O trabalho de divulgação era feito por nós mesmos. Divididos em três grupos de quatro jovens cada, visitávamos há cada domingo aqueles bairros, fazendo abordagens junto aos moradores da periferia. Foi a experiência mais fantástica de minha vida. Andando no Uruará (o bairro para o qual foi designado), juntamente com Delza, Albertina e Tânia, aprendi o que era militância. Incorporei o espírito da Corrente e aos poucos fui sendo seduzido pelas idéias do grupo, e principalmente pelo carisma de Pedro.

Após as três apresentações nos bairros, fazíamos uma reunião com os moradores e discutíamos qual o principal problema que os afligia. A falta d´água era quase unanimidade. Recolhíamos então assinaturas para um abaixo-assinado e nos preparávamos para levar a reivindicação à Cosanpa. Estava plantada a semente das primeiras associações de bairro de que se teve notícia. Daquelas reuniões, surgiram muitas pessoas simples que acreditaram em nossa proposta e que anos depois seriam os verdadeiros militantes de base do PT. Essa mesma gente acreditou no partido e nem percebia o processo de lavagem cerebral (pelo qual nos já havíamos passado) patrocinado pela “Corrente”.

Depois de seis meses de atividades o grupo perdeu a força. Pedro, Ranulfo e Antonio Vieira chegaram à conclusão de que a experiência não progrediria. Pedro já havia assumido uma nova tarefa: elegeu-se presidente da recém-criada Associação dos Comerciários. Iniciava uma nova etapa, a da plantação das sementes do sindicalismo urbano. Mas a sagacidade de Pedro era algo fora do comum. Ele não queria desistir de todo do projeto com os jovens. Percebeu que entre os doze pelo menos três poderiam ser “salvos”, já que a maioria não queria mais saber de reunir ou andar nas periferias. Os três eram eu Milton e Onildo. Chamou-nos para uma conversa e nos desafiou a concentrarmos nossas forças no bairro que havia avançado mais em organização: a Interventoria. Aceitamos e passamos a visitá-la com freqüência. Convencemos os demais a nos ajudarem numa última apresentação da peça naquele bairro. Pedro acreditava que depois disso teríamos um foco de movimento popular na Interventoria. Só que depois da apresentação nada aconteceu. Milton e Onildo esmoreceram e só eu mostrava apetite para continuar.

Pedro, já casado com Raimundinha, me chamou à sua casa e passamos a conversar cada vez mais. Comecei a ler Marx, Lênin e outros autores. Ele me ensinava política e eu lhe ensinava xadrez. Mestre e discípulo eram unha e carne, a ponto de Raimundinha ser deixada em segundo plano. Pedro praticamente me adotou como um irmão mais novo. Minha vida vazia encontrava ali algum sentido. Estava consagrada a junção da fome com a vontade de comer. Eu nem imaginava que toda aquela experiência redundaria, dois anos depois, na minha filiação a um partido político de esquerda. E como Lula, eu odiava política...

Mas antes disso eu precisava ser batizado na vida sindical. Pedro apostou todas as fichas em mim e me convidou a fazer parte do “grupo dos seis” da Associação dos Comerciários. Mas esta é outra história, que eu conto em breve.

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