Há mudanças que vem para o bem, outras não. Mudar de casa pode significar não tão-somente mudar de ares, como também de hábitos. No meu caso, especificamente, cada mudança de endereço que tenho feito nos últimos 15 anos (desde que formei uma família) significou um alento de página virada. Há momentos em que para recordar um determinado fato basta associar à casa que morei à época do fato (“O filho caçula nasceu na Aldeia ou na Prainha?” e “Qual era a nossa casa quando a filha mais velha passou no vestibular?” ou ainda, “Onde assistimos aquele jogo em que o Roberto Carlos arrumou a meia e deixou o francês meter um gol?”).
Mas se existe uma coisa nesse negócio de mudar de endereço que é estressante, é a própria mudança. O dia da mudança: o caminhão velho, o colchão velho à amostra, o cachorro estressado que não pára de latir, o carregador que despenca com o guarda-roupa, o cachorro estressado correndo atrás do carregador, o motora querendo apressar a mudança para pegar outro carreto (e se possível, evitar que consigamos transportar tudo de uma vez), a filha que vê a caixa de esmaltes cair na calçada, aquela cueca que não devia ficar à mostra, o cachorro estressado mordendo o próprio dono, os vizinhos olhando o pandemônio, o carregador derrubando mais um armário, o fio do telefone que insiste em se enroscar no armário mal arrumado, o carregador cantando a empregada enquanto o fogão despenca da carroceria, o cachorro estressado correndo atrás do vizinho, o filho caçula deixando a caixa de cd’s se espalhar na rua, o carregador usando Neruda como suporte do armário mal encaixado, o cachorro fugindo para a rua vizinha com os filhos atrás...
Visão do inferno! A chegada ao novo endereço é sempre acompanhada por olhos atentos. Os novos vizinhos julgam quem chega pelo que desce do caminhão. Caixa de livros: será que ele é juiz, promotor advogado ou professor? E a mulher, será que vai bater papo com a gente sobre a novela das oito ou não colocará o nariz fora da porta? E os filhos? Serão anjinhos ou demônios? Cachorros? Seis? Não é possível! Será que eles têm muitos bens para guardar? Computador? Serão intelectuais, ou gostam só de sites pornô na internet? E o que é aquele colchão todo esfarrapado, gente?
Passado o susto inicial, alojam-se os móveis, arrumam-se os livros, o sofá, a televisão, uma pizza e o resto fica para amanhã... Primeiro fim de semana na casa nova é sempre a mesma coisa: rearrumar tudo quase do mesmo jeito que estava na casa anterior, apesar de nos sentirmos totalmente renovados com o novo espaço...
Na última mudança que fizemos, acerca de duas semanas, resolvi cooperar um pouco mais com a ordenação do espaço do que o normal. Tomei conta do quintal e ajudei os filhos a capinar e queimar o mato. Trabalho duríssimo para um pseudo intelectual sedentário que mal afasta o traseiro de um computador. Meu cotidiano é marcado pelo cansaço mental e pelo acúmulo de calorias pelo corpo mal ajambrado. Assim, capinar um quintal é uma tarefa parecida aos Doze Trabalhos de Hércules.
Primeiro, “penteio” o mato com um ancinho. Junto montes de folhas secas, carrego pedaços de madeira e formo monturos. O filho caçula acompanha. O mais velho, com terçado, explora a ala oriental do grande quintal derrubando touceiras de flores já mortas e seus espinhos vivos. Formigas-de-fogo disputam o mesmo espaço conosco. Nosso novo latifúndio nos faz sentir num ínfimo pedaço de floresta amazônica no coração urbano da cidade.
A tarde vai terminando. O monturo de restos de quintal já se avoluma no centro. Os meninos esperam a ordem do “senhor dos quintais” para tacar fogo. As labaredas logo surgem e o fascínio toma conta de nós. Esse artigo nasceu neste momento. Enquanto as chamas crepitavam e transformavam em cinzas o que ficou depositado no chão do quintal, nossos olhos se iluminavam e de repente, continuávamos aumentando o monturo, assim que ele baixava.
Sobre as cinzas mais folhas e gravetos, pedaços de madeiras. Novas chamas, faíscas, fumaça. O poder do fogo inebria. Os meninos se cansam da brincadeira, mas o menino que existe em mim não consegue parar. Freneticamente continuo alimentando aquele fogo que parecer surgir de dentro de mim.
O corpo cansado encontra forças para se arrastar por entre os mais de trinta metros de quintal em busca de gravetos e folhas. E se há algum matinho que ainda não viu ancinho, lá estou eu arrancando ervas daninhas, restos de troncos. Como se estivesse petrificado pelo poder do fogo, me recuso em deixá-lo apagar.
Me sinto o próprio “mestre do fogo”. Um Hades tupiniquim que não ouve quando a família chama para degustar mais uma pizza. A noite caiu, mas o fogo não. Se depender do “mestre do fogo e senhor dos quintais”, não!
Os olhos lacrimejam, os braços fatigados continuam a arrastar o ancinho. A pá já não levanta as folhas com o mesmo poder, mas o fogo continua impulsionando meu ser. Porque será que o fogo tem esse poder de arrancar de um pacífico cidadão a vontade de queimar pobres folhinhas mortas? Seria eu uma reencarnação de um inquisidor Torquemada, olhando aqueles hereges gravetos farfalharem ao contato combustível e tornarem-se cinzas que o leve vento carrega?
Nem me importo com os vizinhos, que já devem estar incomodados com os rolos de fumaça penetrando suas janelas. Boas vindas estas! Meu lado Nero não deixa folha sobre folha no quintal. Ao final, exausto, olho minha “obra”: um quintal limpo e preparado para receber meu seis cachorros!
À noite durmo e tenho pesadelos: gravetos ensandecidos com o rabo em chamas me perseguem. Vizinhos riem e ao invés de água jogam gasolina sobre mim. Escorrego no quintal e resvalo por um buraco que me leva ao formigueiro. Sou recebido por formigas-de-fogo que me aplaudem. Me sinto o novo senhor do fogo, estendo as mão e me jogam uma tocha que me queima!
Acordo em pé na cama com a lâmpada quente na mão. O cachorro late e avisa que é hora de voltar ao cartório. Já não sou senhor dos quintais. No máximo senhor da burocracia. Que vontade de tocar fogo naqueles malditos papéis...
Mas se existe uma coisa nesse negócio de mudar de endereço que é estressante, é a própria mudança. O dia da mudança: o caminhão velho, o colchão velho à amostra, o cachorro estressado que não pára de latir, o carregador que despenca com o guarda-roupa, o cachorro estressado correndo atrás do carregador, o motora querendo apressar a mudança para pegar outro carreto (e se possível, evitar que consigamos transportar tudo de uma vez), a filha que vê a caixa de esmaltes cair na calçada, aquela cueca que não devia ficar à mostra, o cachorro estressado mordendo o próprio dono, os vizinhos olhando o pandemônio, o carregador derrubando mais um armário, o fio do telefone que insiste em se enroscar no armário mal arrumado, o carregador cantando a empregada enquanto o fogão despenca da carroceria, o cachorro estressado correndo atrás do vizinho, o filho caçula deixando a caixa de cd’s se espalhar na rua, o carregador usando Neruda como suporte do armário mal encaixado, o cachorro fugindo para a rua vizinha com os filhos atrás...
Visão do inferno! A chegada ao novo endereço é sempre acompanhada por olhos atentos. Os novos vizinhos julgam quem chega pelo que desce do caminhão. Caixa de livros: será que ele é juiz, promotor advogado ou professor? E a mulher, será que vai bater papo com a gente sobre a novela das oito ou não colocará o nariz fora da porta? E os filhos? Serão anjinhos ou demônios? Cachorros? Seis? Não é possível! Será que eles têm muitos bens para guardar? Computador? Serão intelectuais, ou gostam só de sites pornô na internet? E o que é aquele colchão todo esfarrapado, gente?
Passado o susto inicial, alojam-se os móveis, arrumam-se os livros, o sofá, a televisão, uma pizza e o resto fica para amanhã... Primeiro fim de semana na casa nova é sempre a mesma coisa: rearrumar tudo quase do mesmo jeito que estava na casa anterior, apesar de nos sentirmos totalmente renovados com o novo espaço...
Na última mudança que fizemos, acerca de duas semanas, resolvi cooperar um pouco mais com a ordenação do espaço do que o normal. Tomei conta do quintal e ajudei os filhos a capinar e queimar o mato. Trabalho duríssimo para um pseudo intelectual sedentário que mal afasta o traseiro de um computador. Meu cotidiano é marcado pelo cansaço mental e pelo acúmulo de calorias pelo corpo mal ajambrado. Assim, capinar um quintal é uma tarefa parecida aos Doze Trabalhos de Hércules.
Primeiro, “penteio” o mato com um ancinho. Junto montes de folhas secas, carrego pedaços de madeira e formo monturos. O filho caçula acompanha. O mais velho, com terçado, explora a ala oriental do grande quintal derrubando touceiras de flores já mortas e seus espinhos vivos. Formigas-de-fogo disputam o mesmo espaço conosco. Nosso novo latifúndio nos faz sentir num ínfimo pedaço de floresta amazônica no coração urbano da cidade.
A tarde vai terminando. O monturo de restos de quintal já se avoluma no centro. Os meninos esperam a ordem do “senhor dos quintais” para tacar fogo. As labaredas logo surgem e o fascínio toma conta de nós. Esse artigo nasceu neste momento. Enquanto as chamas crepitavam e transformavam em cinzas o que ficou depositado no chão do quintal, nossos olhos se iluminavam e de repente, continuávamos aumentando o monturo, assim que ele baixava.
Sobre as cinzas mais folhas e gravetos, pedaços de madeiras. Novas chamas, faíscas, fumaça. O poder do fogo inebria. Os meninos se cansam da brincadeira, mas o menino que existe em mim não consegue parar. Freneticamente continuo alimentando aquele fogo que parecer surgir de dentro de mim.
O corpo cansado encontra forças para se arrastar por entre os mais de trinta metros de quintal em busca de gravetos e folhas. E se há algum matinho que ainda não viu ancinho, lá estou eu arrancando ervas daninhas, restos de troncos. Como se estivesse petrificado pelo poder do fogo, me recuso em deixá-lo apagar.
Me sinto o próprio “mestre do fogo”. Um Hades tupiniquim que não ouve quando a família chama para degustar mais uma pizza. A noite caiu, mas o fogo não. Se depender do “mestre do fogo e senhor dos quintais”, não!
Os olhos lacrimejam, os braços fatigados continuam a arrastar o ancinho. A pá já não levanta as folhas com o mesmo poder, mas o fogo continua impulsionando meu ser. Porque será que o fogo tem esse poder de arrancar de um pacífico cidadão a vontade de queimar pobres folhinhas mortas? Seria eu uma reencarnação de um inquisidor Torquemada, olhando aqueles hereges gravetos farfalharem ao contato combustível e tornarem-se cinzas que o leve vento carrega?
Nem me importo com os vizinhos, que já devem estar incomodados com os rolos de fumaça penetrando suas janelas. Boas vindas estas! Meu lado Nero não deixa folha sobre folha no quintal. Ao final, exausto, olho minha “obra”: um quintal limpo e preparado para receber meu seis cachorros!
À noite durmo e tenho pesadelos: gravetos ensandecidos com o rabo em chamas me perseguem. Vizinhos riem e ao invés de água jogam gasolina sobre mim. Escorrego no quintal e resvalo por um buraco que me leva ao formigueiro. Sou recebido por formigas-de-fogo que me aplaudem. Me sinto o novo senhor do fogo, estendo as mão e me jogam uma tocha que me queima!
Acordo em pé na cama com a lâmpada quente na mão. O cachorro late e avisa que é hora de voltar ao cartório. Já não sou senhor dos quintais. No máximo senhor da burocracia. Que vontade de tocar fogo naqueles malditos papéis...
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(*) Artigo inserido em minha coluna semanal Perípatos, publicada hoje no Diário do Tapajós, encarte regional do Diário do Pará.
Detesto queimadas, mudanças, vizinhos,formigas,papéis...menos os que voce escreve.
ResponderExcluirQuando eu crescer eu juro que vou escrever assim.
Feliz casa nova, irmão.
Meu amigo, dei muita risada com esse teu texto tão criativo apesar de totalmente realista...assisti do meu quintal esse final de semana uma mudança com as mesmas caracteristas tuas,folha ,fumaça etc...só que aqui já entra a vizinha(eu)reclamando da fumaçeira!
ResponderExcluirAdorei tua história!Sejam felizes em sua nova casa.
Ninos, precisamos juntar o monturo dos teus textos e publicar.
ResponderExcluirFelicidades !
Neucivaldo,juro que quase escrevo isso em meu comentário.E ia sugerir justamente voce para ser o editor - já que estás "crescidinho" - e quem sabe com o selo do ICBS.
ResponderExcluirTalvez assim o Cristovam apareça,que eu nunca mais ouvi falar pela blogosfera.
Anraço prá ti.
Meu amigo, agora me preocupei.
ResponderExcluirFogo no Cartório ... Serás o Nero Santareno?
Já estou angustiado, aguardando sua próxima mudança. Mas, por enquanto, fico me deleitando com o que escreves.
ResponderExcluirBeijos no coração.
Anderson Dezincourt.
Ninos,
ResponderExcluirTambém tenho a mesma fixação por fogo. Sinto-a, sobretudo, quando me ponho a queimar textos perdidos de trabalhos não-corrigidos (e outros corrigidos e não-devolvidos).
Se me deixar levar por essa diversão sádica, sou capaz de queimar toda a minha pequena biblioteca.
Uma delícia a sua crônica.
Não esqueces que há uma mudança maior que todas, a da terra para os céus. O caminho? com esforço se acha. O mapa é a bíblia sagrada, que deve ser examinada com extrema humildade. Não será preciso levar nada em termos materiais e cada membro da família há de receber a passagem individualmente, ainda que uns possam ajudar os demais a perseverar fiéis até o fim, com um coração puro.
ResponderExcluirDudu Dourado disse...
ResponderExcluirQue voce seja muito feliz nessa sua nova morada Ninos. Um dia que voce der uma topada numa pedra, com certeza vais escrever um cronica, me lembra muito o Carlos Eduardo Novaes, só que menos sarcástico, seja mais e escreva mais.FELICIDADE.
22/11/06 15:45
Ninos, quando vocês conbinarem para tomar umas "geladas", para inaugurar seu novo lar, não esqueça de me convidar.Hehehehehe.
ResponderExcluirFloripa.
23/11/06 09:47
Éeeeeeeeeeeegua do texto paid'égua!
ResponderExcluirNinos, Romy, eu também sou piromaníaco e me imaginei ao lado do Jota "botando lenha na fogueira".
ResponderExcluirTenho um monte de jornais e revistas velhos. Vamos combinar a próxima "queimada"?
Floripa
Ai Ninos, você me faz chorar de tanto rir. Como você consegue escrever tão bem hein?
ResponderExcluirMe divirto muito...você consegue animar qualquer deprimido. Você tem o dom de ver as coisas simples e obvias e transcrevê-las de uma forma fantástica. Vou invejar um amigo que postou um comentário .." quando eu crescer quero escrever como você" ...rsrsr..vc é d+m....um dia aprendo professor!!