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sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Dez anos sem Kauré, um ano com Kauré (*)

11 de outubro de 2006, quarta-feira, véspera do feriado de Aparecida e do Dia das Crianças.
Um grupo de amigos se reúne em torno de algumas garrafas e pratos com doces, para comemorar a criança que há dentro de nós. Um misto de alegria e tristeza paira no ar, pois naquele momento rememoramos os 10 anos da perda de um artista local e grande amigo, ao mesmo tempo que concluímos o primeiro ano do ciclo cultural surgido em nome dessa lembrança.
Kauré é mais que uma lenda indígena amazônida em torno de um pássaro, também conhecido como Coleirinha ou Tem-tenzinho, que é considerado um símbolo de fortuna e felicidade doméstica representada por pedaços de seu ninho, transformado em talismã. Kauré, para aquele grupo de amigos reunidos há uma semana numa casa da Aldeia, é como uma fênix cultural que ressurge das cinzas de um passado recente e tenta se firmar como alternativa para arte e a cultura.
Kauré é um velho amigo que se foi há 10 anos depois de ser acometido de um câncer nas vias nasais e lutar desesperadamente pela vida. Era Manuel Maria Duarte, o popular Kauré, jovem ator que não pôde concluir alguns de seus sonhos, entre eles terminar o Curso de Ciências Sociais na UFPa. Fã de Renato Russo, coincidentemente morreu no mesmo dia do astro pop, este levado pela AIDS.
Dois anos depois daquela tragédia para muitos atores que acompanharam a trajetória de Kauré, um dos fundadores da ATAS – Associação do Teatro Amador de Santarém, o grupo de amigos a que me referi no início resolveu montar um novo grupo de teatro em Santarém. Alenilson Ribeiro, pedagogo, Márcia Corrêa, bancária, e as irmãs Nira e Nilce Pires, coreógrafa e atriz respectivamente, remanescentes que eram do já extinto Gruteja (Grupo de Teatro José de Anchieta), fundaram em 1998 o Grupo Teatral Kauré (GTK), em homenagem àquele velho amigo.
Minha relação com o grupo e com Kauré sempre foi próxima, ao ponto de me unir a eles no ano passado e decidirmos juntos dar um novo passo cultural: transformar o grupo de teatro amador em Instituto Cultural.
A fundação oficial, com votação de estatuto e eleição de diretoria, aconteceu num espaço mágico: o Centro Cultural João Fona, cedido pelo artista plástico e diretor da casa, Laurimar Leal, que também se filiou ao grupo como um dos fundadores. A solenidade, que teve como mestre de cerimônia e membro fundador do grupo o professor Anselmo Colares, foi presidida pelo também amigo do grupo, Roberto Vinholte (então coordenador municipal de cultura). Ele empossou a diretoria e anunciou os artistas que apresentaram shows em homenagem ao novo grupo cultural, entre estes os músicos João Otaviano Matos Neto e Zé Azevedo, nosso menestrel nordestino.
Das lembranças do menino Kauré, surgiu uma ONG cultural que comemorou, na mesma data de sua morte, o primeiro ano de vida, e que ainda engatinha tentando vencer barreiras burocráticas e financeiras para sobreviver. O nome do grupo é quilométrico e pomposo: Instituto Kauré de Pesquisa e Promoção do Patrimônio Artístico-Cultural da Amazônia (INKA), que se propõem investir nas 7 Artes Clássicas, através de projetos sociais de inclusão entre populações carentes.
Mas de onde surgiu esse apelido, que transformou-se no nosso talismã? Contam as pessoas que se relacionavam com a família de Kauré, que quando menino ele insistia em andar com um velho pipo de borracha na boca. Não havia quem conseguisse arrancar-lhe aquele passatempo. Dizem que se jogassem o pipo na rua ele ia buscar e botava na boca de novo. Aí, a velha sabedoria cabocla voltou a funcionar. A avó resolveu dar sumiço do pipo e para que este não abrisse o berreiro, dizia ao infante: “Foi Kauré que levou teu pipo, meu filho”. Sem entender o que vinha ser o tal Kauré, o menino, meio assustado, foi se conformando e acabou adotando o nome daquela entidade amazônica que levou seu passatempo favorito.
Essa história me lembra muito o enredo do melhor filme de todos os tempos (segundo os maiores experts do cinema mundial): Cidadão Kane. Lá, ao invés do pipo, o magnata constrói um império das comunicações e morre praticamente sozinho (depois de tornar-se um tirano), pronunciando uma palavra que ninguém consegue associar à nada em sua vida: Botão de Rosa (Rosebud, em inglês). Ao final fica-se sabendo que era o nome escrito numa prancha de snowboard (para esquiar na neve), que ele segurava quando foi separado da mãe e começou uma nova vida.
Mas voltando à nossa realidade, a equipe que hoje forma o Instituto Kauré (além dos já citados), conta ainda com alguns jovens do bairro da Aldeia e prepara um projeto baseado em oficinas artísticas a serem ministradas em bairros da periferia, onde se quer levar, aos poucos, o primeiro contato com jovens adolescentes com as chamadas 7 Artes Clássicas (Música, Poesia, Dança, Escultura, Pintura, Teatro e Cinema).
Na festa do 1º aniversário, além de lembrar do patrono do grupo, homenageamos um dos atores de teatro amador mais experientes de Santarém, e que atualmente se integrou ao nosso grupo: Ernandes Nascimento, que completou em 2006 25 anos de plena atividade nos diversos grupos teatrais do bairro da Aldeia. Ernandes foi contemplado com o diploma Amigo do Kauré, uma singela homenagem do Instituto Kauré que será entregue anualmente a personalidades culturais de nossa cidade, pelos serviços prestados à cultura e às nossas atividades. No encontro, decidimos também homenagear com o mesmo diploma o ex-coordenador de cultura Roberto Vinholte, o padre Boeing, que deixou a paróquia de São Raimundo e hoje trabalha em Alenquer (membro e advogado do Instituto) e o artista plástico Laurimar Leal. Os diplomas serão entregues aos homenageados pessoalmente pelo presidente do INKA Alenilson Ribeiro, sem nenhuma solenidade de pompa e apenas com o nosso reconhecimento público.
Podemos afirmar, sem dúvida, que em todos os encontros já realizados (e os que ainda virão), vemos sempre aquele menino do pipo andando entre nós, com o mesmo olhar e sorriso marotos e aquelas tiradas que faziam todos morrer de rir, principalmente quando afirmava de forma bandalha em alusão ao seu nome de batismo: “Minha arte tem dois sexos – uns dias sou Manuel, em outros sou Maria”.
Kauré, a estrela que brilha em nosso palco.
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(*) Artigo inserido (17.10) em minha coluna semanal Perípatos, publicada no Diário do Tapajós, suplemento regional do Diário do Pará.

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